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outubro 2016

O CÃO E O COVEIRO
A tentativa de chegar em Glaura

O dia amanhecera bonito na região de Rio Cima. Acordar e saber que Acuruí, cidade onde faríamos a nossa parada para almoço, não estava distante, nos deixou um pouco preguiçosos no café da manhã. Marcell carregava em seus alforjes algumas ervas que ele havia comprado no mercado municipal de Belo Horizonte antes da viagem. As informações eram de que as folhas deveriam ser consumidas em forma de chá e sua atuação no organismo era de caráter anti-inflamatório e analgésico. Nós costumávamos tomar o chá todos os dias pela manhã e a noite depois do jantar. Apesar de ser muito crente em relação ao uso de plantas em medicina preventiva e alternativa, eu não estava levando muito a sério que aquela coleção de plantas desidratadas, que continha até folhas de camomila, poderia ter efeito em uma viagem relativamente curta como a nossa. Se o efeito era certo eu não poderia dizer, porém a única vez que senti dores nas pernas durante a viagem foi exatamente dois dias após eu ter abandonados os chás. Estava subindo os últimos quilômetros da Serra do Mar quando fui pego por fisgadas dolorosas na musculatura frontal da coxa esquerda.

O sol dava seus primeiros sinais de castigo. Daqui para frente vou poupar o leitor de ficar se cansando com os relatos de exaustão em morros intermináveis e sol escaldante, pois, teoricamente, todo brasileiro sabe como é o relevo em Minas Gerais.

Era quase uma hora da tarde quando chegamos ao trevo de Acuruí. A cidade que pertence a rota oficial da Estrada Real está localizada em uma das regiões mais aquíferas dos entornos da capital mineira e tem como vizinhos importantes as serras da Gandarela, Caraça, Capanema e um pouco mais distante a serra do Cipó. A cidade fica no pé de um vale a beira da represa Rio das Pedras, que na tradução para tupi-guarani forma o nome da cidade. Acuruí ainda preserva sua arquitetura peculiar da época em que era uma vila estratégica para tropeiros e mineradores de ouro. Depois que o ouro na região se esgotou muitas famílias abandonaram o lugar deixando para trás somente as pessoas mais idosas ou com crianças muito pequenas em casa. Assim a cidade se conservou tendo pouco crescimento desde então.

Entramos em Acuruí com calma procurando por alguém nas ruas que pudesse nos dar uma indicação de algum lugar para comer, porém quanto mais adentrávamos na cidade menos esperançoso eu ficava de encontrar um restaurante aberto aquela hora. As ruas estavam vazias e pouquíssimas casas tinham suas janelas abertas, apesar do forte calor.

Pedalando sem rumo pela cidade acabei avistando, algumas dezenas de metros à frente, um senhor trabalhando naquele que deveria ser o pouco habitado cemitério da cidade. Homem magro de pele enrugada e marcada pelo sol, vestindo uma camisa de algodão molhada por suor e um boné que mal dava para definir a cor. Naquele terreno com enxada em mãos, retirava os matinhos que cresciam ao redor dos túmulos enquanto aguardava, pacientemente, a chegada de um novo e eterno hóspede. A sua frente, do outro lado do muro, encontrava-se a igreja de Nossa Senhora do Rosário, construída no século dezoito para celebrar missas para os negros e escravos.

Nos jardins desta igreja acabei me surpreendendo ao encontrar uma das maiores matilhas que já havia visto na vida. A cada cão que latia com a nossa presença, outros dois se revelavam no meio do mato. Surgiam cães em proporções exponenciais. Se não fosse pelo encontro prévio que tivemos com o coveiro, e até então não havíamos encontrado ninguém pelas ruas, eu desconfiaria que Acuruí era governada por aqueles bichinhos enfurecidos.

Nossa única referência no momento continuava sendo o coveiro. Tivemos a ideia de entrar no cemitério para conversar com o homem, porém, não encontramos nenhuma entrada nos entornos do terreno. Como vamos entrar aí? – perguntei. Marcell adiantou a resposta e com seus quase dois metros de altura apontou a cabeça sobre o muro e por muito pouco não matou de susto aquele senhorzinho do boné desbotado. Perguntamos por um restaurante aberto e o homem nos respondeu. Deixamos o lugar mais uma vez sem saber para onde ir. Ninguém entendeu absolutamente nada do que foi dito. Neste instante avistamos um carro apressado que subia a rua em nossa direção. Conseguimos pará-lo. Coincidentemente, o motorista do carro estava fazendo entregas de marmitas pela região. As refeições eram montadas por dona Eliana, proprietária do único restaurante de Acuruí, chamado Mãos Dadas. O lugar é bem simples, montado com mesas de madeira maciça em um aconchegante corredor de garagem. Éramos os únicos clientes naquela hora, mas a comida estava no fogo e foi servida com fartura de sabor e qualidade.

Eliana guardava sobre o balcão um caderno bem legal com centenas de mensagens deixadas por viajantes da Estrada Real. Enquanto eu fazia minha contribuição histórica naquele livro de recordações, o céu se fechou repentinamente e desabou em águas torrenciais. Por alguns minutos deixei que o tempo me levasse. Ali, sentado num banquinho de madeira, fiquei observando a água escorrer por entre as folhas verdes de uma árvore, enquanto na minha cabeça tentava recriar cenas da vida em Acuruí nos tempos do Brasil antigo.  Pensava que a mesma chuva que na rua lavava as pedras das calçadas, outrora havia de ter aborrecido algum coronel que saiu de casa sem carregar o seu guarda-chuva.

Eram duas horas da tarde quando o tempo finalmente se acalmou. Apesar da forte chuva o chão de terra ainda se mantinha completamente seco e a poeira continuava a brincar de me empanar. A lua logo haveria de aparecer no céu. Como combinado, aos primeiros sinais do entardecer começaríamos a buscar uma área segura para montarmos acampamento. Glaura ficou de fora da meta do dia.

Um mato sem cupim daqui, outra braquearia dali, um casarão colonial assustador com um cavaleiro que corria por seus jardins ignorando os nossos chamados, aos poucos fomos ficando sem opção para pernoitar tranquilamente. Quando a noite bateu seu sino avisando que já estava se colocando em cena, Marcell e eu cruzávamos o distrito de Soares. O primeiro sinal de salvação apareceu. A nossa esquerda, bem em frente ao um bar localizado na única avenida do vilarejo havia um campo de futebol muito bem cuidado e todo cercado por alambrados. Ali era, sem dúvidas, um ponto bom para uma noite de sono tranquilo. No boteco ao lado brotou uma das surpresas mais agradáveis desta viagem. Encontrava-se estacionada próximo a mesa de bilhar – e abarrotada de tralhas –  a bicicleta do cicloviajante, Apgaua, nome que só deixou de ser Gael na minha cabeça três dias após o nosso encontro. Apgaua estava vindo de Vitória no Espiríto Santo e tinha como objetivo pedalar até a região costeira do pacífico. –  “Gael”, você que está vindo de Glaura, dá pra gente chegar lá ainda hoje antes de escurecer? – perguntamos. Apgaua: – Não, e eu consigo chegar a Acuruí?  – Devolvemos a resposta: – Também não. Melhor encontrarmos o responsável por este campo de futebol para ver se a gente consegue montar acampamento nele esta noite. Descobrimos que o vice presidente da associação desportiva de Soares, homem responsável pela conservação do campo e por autorizar a nossa entrada no gramado, era Deguinho, marido de Marlene, a dona do bar onde encontramos Apgaua. Deguinho não estava em Soares, havia saído para prestar um serviço na região e deveria retornar dentro de algumas horas. Três ovos frescos, um macarrão instantâneo e três garrafas de cerveja, esta foi a nossa feira no boteco enquanto aguardávamos o marido de Marlene. As comidas ficaram obviamente para o jantar e a cerveja não deu nem para completar dez minutos de prosa boa. Deguinho retornou a Soares trazendo a ótima notícia de que poderíamos utilizar o vestiário da associação para passar a noite. Banho quente, área coberta e segura, um hotel cinco estrelas aos olhos de quem viaja de maneira simples e distante do luxo. O jantar foi servido com ovos mexidos e macarrão instantâneo, os colchonetes estendidos sobre o chão e o alambrado do campo se transformou em um varal improvisado. Ficamos por alguns minutos sentados a beira do campo aproveitando a brisa fresca da noite para falarmos das histórias que nos fizeram chegar até ali. Durante a madrugada – nocauteado de sono – acordei alegre ao ouvir o barulho da chuva caindo lá fora. Marcell e Apgaua também despertaram ao som de um trovão. – Que maravilha esta chuva, ein pessoal? E veio a resposta: – Puta que pariu, a roupa seca no varal.


ACESSE OS OUTROS CAPÍTULOS DESTA VIAGEM
INTRODUÇÃO / PARTE 1

 


outubro 19, 2016 0 comentário
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Viajar de bicicleta é uma experiência tremendamente fantástica capaz de marcar uma vida por toda ela. É diferente e não dá para dizer que seja a mesma coisa ou algo parecido a uma viagem de moto, carro ou avião. Entenda que não estou dizendo que viajar de bicicleta seja a melhor forma de sair por aí, pois, emoção é um sentimento muito pessoal.

Fazer uma cicloviagem tem suas particularidades e são elas que fazem a coisa ficar mágica. Com a bicicleta você vai mais devagar que um carro ou moto, porém, transita um pouco mais veloz se estivesse caminhando. É este meio termo que nos permite agregar um pouco do que cada jeitinho de viajar tem de melhor, transformando a experiência de uma cicloviagem em algo encantador. Você pode se deslocar de cidade a outra no mesmo dia, sentir o vento no rosto, escutar o cantar dos pássaros, encontrar cachoeiras escondidas pelo som de suas quedas d’água na mata, parar em qualquer lugar, fazer novas amizades, aprender novos costumes e ao final de tarde ainda se deliciar com a prazerosa sensação de ter vencido, com seu próprio esforço, estradas sob as mais diversas condições de clima e relevo.

O cicloturismo é democrático, não há separação entre ricos e pobres. Qualquer um pode viajar de bicicleta, desde que tenha uma em mãos. E não precisa ser nenhuma bicicleta de outro mundo, basta ter duas rodas, pedal e um par de freios, para brecar a sua vontade incessante de sair voando por aí.

Eu quando comecei a viajar de bicicleta –  e não faz tanto tempo assim – nem sabia que existia um nome próprio para isso. Fui saber o que era cicloturismo muito tempo depois quando já tinha acumulado um pouco mais de experiência. A minha primeira viagem, que aconteceu na companhia de um amigo, foi uma verdadeira catástrofe. Um aula dramática de tudo o que não se deve fazer em uma cicloviagem. Sem dinheiro, dias contadíssimos, preparação física nula, alimentação porca, ausência de equipamentos, adaptações inseguras, bicicleta mal ajustada dentre outras coisas que fizeram desta viagem uma ótima escola. O aprendizado foi tão intenso e marcante que eu me senti no céu quando saí para viajar pela segunda vez.

Eu me lembro muito bem como foi que caí, oficialmente, neste mundo das viagens de bicicleta. Nasci e fui criado em um pequena cidade do sul de Minas Gerais chamada Alfenas. A cidade banhada pelo lago de Furnas é mais uma destas do interior em que a religiosidade da população é bastante visível. Cresci ouvindo histórias de peregrinos que viajavam a pé, à cavalo ou de bicicleta até a cidade de Aparecida no estado de São Paulo, lugar onde está instalado a segunda maior basílica do mundo depois das edificações de São Pedro, no Vaticano. Esta convivência com pessoas que viajavam de bicicleta acabou me deixando habituado com ideia. Anos mais tarde lá estava eu fazendo também o caminho sul mineiro da fé.

Mas como eu já disse, a minha primeira viagem oficial de bicicleta foi um fracasso que deu certo. O sucesso só aconteceu porque a vontade de chegar ao destino ainda era maior do que a desistir.

Da primeira viagem eu aprendi boa parte do pouco que hoje sei sobre cicloviagens e que na época não tinha muito a quem perguntar. Tinha muitas dúvidas e não sabia por onde começar. Por fim peguei algumas informações superficiais sobre rotas e um bocado sobre alimentação e fiquei por aí.

Durante a viagem ao descer a serra da Mantiqueira quase tivemos um acidente grave quando o bagageiro traseiro da bicicleta do amigo Paulo não suportou a adaptação que ele fez e caiu sobre a roda. Só fui saber o que aconteceu minutos depois do incidente quando eu, visivelmente preocupado, o vi surgir no final da ultima curva da montanha. O bagageiro cedeu enquanto ele passava por um túnel e só foi possível continuar viagem porque ele usou o cadarço de seu tênis para improvisar um novo apoio de bagageiro. Claramente aquela não era a melhor das soluções, mas a engenhosidade arcaica da ideia permitiu que chegássemos aonde queríamos.

As perguntas que atormentavam há quase 10 anos, vejo que hoje ainda continuam sendo as mesmas entre aqueles que estão iniciando no mundo das cicloviagens.  Em geral as dúvidas estão divididas em categorias e suas ramificações. No setor de bicicletas temos as dúvidas referentes a bagageiros, alforjes, acessórios, freios, pneus, tamanhos de quadro, selim e suspensão. Na área de logística e transporte repousam questionamentos como perigos nas estradas, medidas de segurança, o que levar na bagagem, peso, sinalização e etcétera. Em alimentação temos assuntos como fogareiros, comidas práticas, vitaminas e hidratação. Temos também as dúvidas frequentes sobre hospedagem como onde ficar, acampamento, viajar em grupo ou sozinho, higiene pessoal e assim vai. As dúvidas não acabam e as respostas são infinitas.

Após alguns anos quebrando a cabeça a aprendendo um pouco mais a cada dia o ofício de ser um aventureiro, criei manias e modelos de como fazer uma cicloviagem de maneira confortável, segura, prazerosa e econômica. Certamente o leitor haverá encontrar por aí outras tantas opiniões, e algumas até divergentes, baseadas nas experiências de estrada de outros colegas e amigos. Que seja assim, sempre. Algo só pode ser integral quando há a união das partes. Talvez você se veja confortável ao tomar os meus relatos como modelo para suas aventuras; talvez poucas coisas do que falei vão lhe ser úteis; talvez a utilidade deste texto seja apenas para você ter a certeza de que não é por estes caminhos que você traçará os seus.

Assim pretendo compartilhar minhas vivências e aprendizados neste mundo das viagens de bicicleta, dando início a uma coleção de artigos batizados com o título: O Que a Estrada me Ensinou.

Este é o capítulo de introdução.
Bons ventos e ótimas aventuras.

outubro 17, 2016 2 comentários
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Formado à aproximadamente dois anos, estava morando em São Paulo, dividindo apartamento com um grande amigo meu, trabalhando em uma clínica no Brás e vivendo aquela rotina que todo paulistano, ou quem mora na cidade de São Paulo, conhece: a que faz você se sentir peça de uma engrenagem e que será facilmente substituído ao “apresentar defeito”.  Soma-se a isso um namoro à distância indo aos trancos e barrancos, que para continuar existindo, dependeria de uma mudança minha. Mudança essa de comportamento e de residência. No caso, mudar-me de São Paulo para Vitória, capital do Espírito Santo.

Essa é a situação a qual me encontrava em Dezembro de 2014, data em que resolvi que ia deixar a capital paulista para viver na Ilha Capixaba.

Conversei com André, amigo com o qual eu dividia o aluguel do apartamento e resolvemos que não haveria maiores problemas em minha saída. O emprego no Brás eu já havia deixado meses atrás e estava prestando serviço em uma clínica em Mogi Das Cruzes. Iria continuar em São Paulo até as festas de fim de ano e depois sair definitivamente da selva de pedras. Porém, em certa segunda-feira ainda no início do mês de Dezembro fui para Mogi trabalhar e recebi a notícia de que havia sido “transferido” para outra clínica, essa em Ferraz de Vasconcelos. Era uma clínica menor e que me renderia menos. Achei que era melhor adiantar meus planos de deixar de vez São Paulo.

Naquela semana fiquei adiantando algumas coisas em casa, fazendo contas e planejando o futuro breve. Rayana, minha namorada, viria para seu curso e no fim de semana iríamos para Sorocaba, onde o irmão dela iria noivar-se. Minha mãe também estaria em São Paulo naquela semana e ia conosco à Sorocaba.

Na festa do noivado, conversando com minha mãe e Rayana, decidi que iria embora de São Paulo na próxima semana. Iria na terça-feira e de bicicleta. Assim, de bate pronto. Eu não possuía equipamentos para uma cicloviagem, porém tinha uma vontade enorme dentro de mim. Já havia feito uma aventura dessas percorrendo o caminho entre Alfenas/MG e Aparecida/SP em 2009, e desde então, sempre novas cicloviagens não saíram do papel. Dessa vez não poderia escapar. Havia saído do emprego, planejado me mudar de cidade, nada poderia me impedir.

De volta a São Paulo, ainda no Domingo, comecei a organizar as coisas para a viagem. Minha bicicleta era simples, mas com certeza agüentaria todo o trajeto com segurança. O grande problema era que não estava equipada com bagageiro. Esse detalhe posteriormente se mostraria fundamental para o desenvolvimento de uma viagem agradável. Mas em São Paulo, com apenas a segunda-feira para planejar e sem chance de desistir ou de postergar a viagem, levar apenas uma mochila com peças de roupas, água e alguns petiscos, parecia-me uma ideia fantástica. Tracei a rota, marquei as paradas onde iria pernoitar, coloquei todo o conteúdo da mochila para testar o peso e simulei também uma troca da câmara de ar, caso o pneu furasse. Este teste era fundamental, pois nunca havia removido um pneu. A vida toda andando de bicicleta e nunca havia tido problema com furos. Pareceu-me e é de fato bem simples. Deixei tudo bem no jeito para o dia seguinte sair cedo: às 06h00min horas já pretendia estar pedalando rumo à Alfenas/MG.

Antes de dormir confirmei com minha madrinha Maria Lucia, que mora em Campinas/SP, a disponibilidade de eu passar a noite lá. Falei também com Analice, amiga minha de infância e da faculdade, que mora em Espírito Santo do Pinhal/SP, que seria a segunda parada da viagem. Ela confirmou. Poderia dormir por lá, porém ela estaria em Alfenas em seu curso de pós-graduação e deixaria a chave da casa com a secretária em seu consultório para que eu pudesse pegar. Em Poços de Caldas/MG, ficaria em uma república de universitários. Meu contato era Bruno, amigo de meu irmão. Eu não o conhecia, mas ele foi bem solícito e disponibilizou seu lar para eu passar a terceira noite da viagem. Agora sim tudo bem resolvido e eu poderia deitar em paz e descansar para o dia seguinte.

Na manhã de terça-feira, acordei no horário planejado, por volta das 05h00min horas. A meta era sair o mais cedo possível, pois ia passar por um trecho da Marginal Tietê para poder pegar a Rodovia dos Bandeirantes com sentido à Campinas/SP, e queria fazê-lo enquanto o tráfego estivesse o menos intenso possível. Tomei um belo café da manhã, reforçado mesmo, bem diferente do que eu costumeiramente como, chequei tudo e parti.

Logo na saída um resquício de um chuvisqueiro qualquer e no viaduto da Pompéia, um arco-íris indicava que havia sido dada a largada! Um pouco mais a frente vi uma das imagens mais marcantes da viagem: o nascer do sol sobre uma ponte que atravessa o Rio Tietê. Uma imagem fantástica de um Rio tão belo que o homem teve a infelicidade de quase destruí-lo completamente na parte em que atravessa a capital paulista. Certamente é contemplada por poucos, como que se a Natureza fizesse isso em resposta ao descaso do homem com o que lhe é ofertado.

Continuando a viagem, havia pedalado uns 15 quilômetros quando o pneu traseiro furou pela primeira vez. Muito precocemente eu achei. Não queria desanimar e fui logo dando um jeito. Peguei o kit de remendo e mãos à obra. Removi a roda, retirei a câmara de ar e enchi-a para observar onde era o vazamento. Eram dois furos, porém um deles eu não conseguia remendar. Andei um pouco pelo acostamento até encontrar uma entrada que dava em um bairro já periférico da cidade de São Paulo. Andei um bocado à pé, cerca de uns 2 km, até encontrar uma bicicletaria.  Lá aproveitei e comprei um retrovisor, além de trocar aquela câmara furada por uma nova e levar uma câmara reserva para caso houvesse outro incidente semelhante. Amigos já haviam me alertado sobre os acostamentos dessas rodovias de maior volume de caminhões. Eles ficam cheios de araminhos e objetos pérfuro-cortantes que vão se soltando desses veículos maiores e acabam por furar os pneus da bicicleta.

Percorri em um ritmo relativamente bom até exatamente a frente do parque de diversões Hopi Hari. Lá novamente tive problemas com o pneu. Dessa vez troquei logo a câmara de ar furada pela nova, enchi-a com a bombinha que levava comigo e fui até Campinas. Essa minha bombinha de mão não era lá essas coisas, portanto o pneu não estava numa calibragem legal e eu custava pedalar, pois a bicicleta parecia bem mais pesada do que ela realmente é. Na entrada da cidade a primeira coisa que fiz foi procurar um posto de gasolina e encher adequadamente o pneu em um compressor de ar decente para terminar de chegar ao apartamento de minha tia. Guardei a bicicleta juntamente com as dos outros moradores do prédio e subi. Lá fui logo tratando de colocar a roupa que estava pedalando na máquina e fui para o banho. Uma das sensações mais incríveis dessa vida é essa: depois de um dia todo de cicloviagem, perrengues, pneus furados, você chegar ao seu destino, tomar um belo banho e ter onde descansar o corpo.  Minha madrinha chegou do trabalho junto com seu marido. Comemos, conversamos bastante e aproveitamos para matarmos a saudade. Antes de deitar, resolvi deixar em Campinas algumas roupas que estavam fazendo muito volume na mochila e eu certamente não precisaria delas. Essa alteração no peso da mochila foi muito válida, porque durante todo o dia pedalando a sensação que dá é a de que ela vai ficando mais pesada a cada quilômetro, e quanto mais leve ela estivesse, mais prazerosa seria a viagem.

Atrasei-me um pouco para sair de Campinas. Na verdade estava contando com um bom rendimento durante as pedaladas e isso se confirmou. Atravessei toda a cidade de Campinas e peguei a estrada sentido Mogi Guaçu/SP. O tempo estava firme, céu limpo e muito sol. Almocei em Mogi Guaçu e dali até Espírito Santo do Pinhal/SP seriam mais ou menos 40 km. Após o almoço, o tempo começou a dar uma guinada incrível. Uma tempestade se formava e eu já tratei logo de deixar a capa de chuva que tinha ganhado de tio David, esposo de minha madrinha Maria Lúcia, no jeito para vesti-la. Pedalar na tempestade foi uma mistura de prazer, apreensão, e sensação de estar desafiando a natureza, obviamente, respeitando a sua magnitude. Na cidade, fui procurar o consultório de Ranieri e Analice, o casal de amigos que me emprestara a chave de sua residência para que eu passasse a noite lá. Conheci a secretária deles, peguei a chave com ela e fui conhecer a casa que ficava nos fundos do consultório. Deixei minhas coisas no chão da sala mesmo e realizei o mesmo ritual da noite anterior na casa de Tia Maria Lúcia. Eles moravam bem próximo da praça da igreja Matriz, e fui até lá para comer um lanche no trailer que Analice tinha me sugerido. Era um trailer bem simples, como os de Alfenas mesmo: mesinhas de plástico, tubos de maionese na mesa e um lanche bem saboroso. Valeu a indicação! Comprei umas coisinhas para passar a noite, algo para o café da manhã e uma garrafa de vinho para retribuir a generosidade do casal para comigo. Voltei para casa, abri uma latinha de cerveja e comecei a assistir televisão. Parece brincadeira, mas cochilei antes mesmo de terminar de beber essa primeira lata.

O destino agora era Poços de Caldas/MG. Era o dia em que menos pedalaria em quilometragem, porém era o que mais ganharia em elevação. Faria o caminho por Andradas/MG e subiria até Poços. O pneu acabou furando novamente no início da subida da Serra e dessa vez eu já estava com a câmara reserva furada na mochila. Tentei remendar a câmara que estava usando, mas havia um furo que eu não conseguia achar. Eu enchia o pneu e ele não vazava, porém quando subia na bicicleta e pedalava ele começava a murchar. Fui assim até Poços de Caldas. Lá, novamente começou a chover. Eu estava em um bairro do subúrbio e procurava um lugar para almoçar. Acabei achando um self-service à vontade bem barato. Comida bem simples. Comi, bebi um refrigerante de 1 litro e fiquei muitíssimo satisfeito, ainda mais quando a dona do estabelecimento cobrou menos de mim, pois achou que eu havia comido muito pouco. Coisas da vida. Agora a missão era achar uma bicicletaria para reparar minhas câmaras de ar, ambas furadas.

Descendo a rua do restaurante onde almocei havia uma bicicletaria. Indaguei o proprietário se havia possibilidade dele fazer os reparos. Disse-me ele que o funcionário responsável pela manutenção estava de folga naquele dia e que ele não poderia me ajudar. Indicou-me outra bicicletaria mais pro interior do bairro. Fui até o local indicado, mas estava fechado. Decepcionante. Uma bicicletaria fechada, outra que não prestava o serviço e eu com os pneus furados. Subindo o morro da primeira bicicletaria, dois borracheiros chamaram-me e quiseram saber o que se passava. Falei-lhes sobre o problema do pneu furado e que necessitava remendá-lo, porém o dono da bicicletaria não fazia esse serviço. Eles de imediato se colocaram a disposição para me ajudar. Repararam a câmara que estava na bicicleta e a que trazia na mochila também. Paguei-lhes, agradeci e parti sob a forte chuva que caía em Poços de Caldas. Atravessei toda a cidade até encontrar o endereço da República dos universitários, onde Bruno morava. Receberam-me muito bem e deixaram-me à vontade. Coloquei minhas coisas na sala, pois dormiria ali. Eles foram para uma festa da faculdade e eu atrás de comida. Dei uma volta pela redondeza à procura de um trailer, lanchonete, ou algo semelhante. Não encontrei nada que me agradasse, mas no passeio já fui conhecendo o caminho pelo qual sairia da cidade na manhã seguinte. Eles moravam bem próximos à saída de Poços que eu pegaria para ir pra Alfenas. Pedi um lanche pelo telefone mesmo, comi e logo que deitei, apaguei. Acordei somente com a chegada do pessoal que estava na festa. Eles estavam bem alterados e falavam muito alto. Fiquei um tempo razoável até adormecer novamente.

Durante toda a viagem estava mantendo contato com algumas pessoas mais próximas. Uma dessas pessoas era Carlos Eduardo, o Du. Du é um grande amigo. Foi juntos que fizemos uma cicloviagem de Alfenas/MG até Aparecida/SP. Era nossa primeira cicloviagem e foi fantasticamente improvisada. Desde lá nunca mais havíamos pedalado juntos. Os rumos que a vida tomou, trabalho, e tudo o mais não nos deram essa oportunidade. Dessa vez ele acabara de chegar de uma cicloviagem que fez até Montevidéu, capital do Uruguai, e estava descansando em Alfenas. Fomos combinando durante esses três dias um possível encontro no meio do caminho entre Alfenas e Poços.

Amanheceu o quarto dia da viagem. Vesti minha roupa, ajeitei as coisas na mochila, fiz os últimos contatos com Du sobre nosso encontro e parti. Logo na saída de Poços de Caldas, sobe-se a serra de São Domingos, porém antes de chegar ao final da subida, o lanche da noite passada me custou uma “parada de emergência”. Já aliviado, continuei a subida. Uma das paisagens mais impressionantes da viagem estava ali. Um horizonte de montanhas e cores que deixa-nos de queixo caído. Os próximos quilômetros foram de descida e alta velocidade. Nessa hora a adrenalina dá o toque especial e realça a sensação de liberdade que durante toda a cicloviagem já é pulsante. Decidi que não almoçaria e apenas faria um lanche breve para ganhar tempo. Fiz isso em um posto de gasolina após passar a cidade de Campestre. Já chegando próximo ao trevo de Serrania, finalmente encontrei Du, vindo do lado oposto da pista.

Paramos ali por um tempo. Conversa vai, conversa vem, saímos rumo à Alfenas. Antes de chegar em Serrania, paramos em uma venda de beira de estrada para tomar uma garapa. Sentamos para esperar o caldo de cana e uma cena bem curiosa aconteceu ali: um pneu de caminhão desceu a mil pelo acostamento da rodovia. Situação digna de desenho animado! Depois fui saber que é uma coisa que acontece até com alguma certa freqüência, mas até hoje foi a única vez que vi.

Em Serrania decidimos terminar o trajeto até Alfenas pela estrada de terra que ligam os dois municípios. Já estava bem cansado nesse final de viagem. A impressão que eu tinha era a de que meu corpo havia se programado exatamente para aqueles quatro dias. Aqueles 392 quilômetros. A mochila já incomodava demais. Sempre que parávamos para uma hidratação, um descanso, e eu tinha a oportunidade de ficar sem a mochila, sentia um alívio inacreditável. Porém, ali, prestes a chegar à Alfenas, sentia que tudo havia valido a pena.

Enfim chegamos. Juntos, eu e Du, fomos pedalando até uma lanchonete tomar um açaí. Brindar ali mais uma cicloviagem concluída e também nossa amizade. Muito do que utilizei na viagem tem embasamento nas dicas que Du me passou, fruto da experiência de suas cicloviagens anteriores. Sou bastante grato a ele por isso.

Por vezes menosprezamos nossa capacidade, porém tudo que precisamos para conseguir algo está em nós mesmos. Pegar uma mochila, encher de roupas, água, ferramentas de bicicleta, sair pedalando de São Paulo até Alfenas pode parecer algo extraordinário ou pelo menos incomum, mas a partir do momento que acreditamos ser possível, esse feito começa a ser realizado. Eu precisava mudar. Deixar velhas certezas para trás. Ir desapegando daquilo que já não me era necessário. Continuar em frente e apenas com o que eu precisava para ser de fato feliz. E assim tudo começa: acreditando que somos capazes. Capazes de mudar. De realizar. Tenha fé em você e viva. Vai dar certo.


outubro 14, 2016 2 comentários
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