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A velha vida deixada para trás

escrito por Paulo S.C Borges outubro 14, 2016

Formado à aproximadamente dois anos, estava morando em São Paulo, dividindo apartamento com um grande amigo meu, trabalhando em uma clínica no Brás e vivendo aquela rotina que todo paulistano, ou quem mora na cidade de São Paulo, conhece: a que faz você se sentir peça de uma engrenagem e que será facilmente substituído ao “apresentar defeito”.  Soma-se a isso um namoro à distância indo aos trancos e barrancos, que para continuar existindo, dependeria de uma mudança minha. Mudança essa de comportamento e de residência. No caso, mudar-me de São Paulo para Vitória, capital do Espírito Santo.

Essa é a situação a qual me encontrava em Dezembro de 2014, data em que resolvi que ia deixar a capital paulista para viver na Ilha Capixaba.

Conversei com André, amigo com o qual eu dividia o aluguel do apartamento e resolvemos que não haveria maiores problemas em minha saída. O emprego no Brás eu já havia deixado meses atrás e estava prestando serviço em uma clínica em Mogi Das Cruzes. Iria continuar em São Paulo até as festas de fim de ano e depois sair definitivamente da selva de pedras. Porém, em certa segunda-feira ainda no início do mês de Dezembro fui para Mogi trabalhar e recebi a notícia de que havia sido “transferido” para outra clínica, essa em Ferraz de Vasconcelos. Era uma clínica menor e que me renderia menos. Achei que era melhor adiantar meus planos de deixar de vez São Paulo.

Naquela semana fiquei adiantando algumas coisas em casa, fazendo contas e planejando o futuro breve. Rayana, minha namorada, viria para seu curso e no fim de semana iríamos para Sorocaba, onde o irmão dela iria noivar-se. Minha mãe também estaria em São Paulo naquela semana e ia conosco à Sorocaba.

Na festa do noivado, conversando com minha mãe e Rayana, decidi que iria embora de São Paulo na próxima semana. Iria na terça-feira e de bicicleta. Assim, de bate pronto. Eu não possuía equipamentos para uma cicloviagem, porém tinha uma vontade enorme dentro de mim. Já havia feito uma aventura dessas percorrendo o caminho entre Alfenas/MG e Aparecida/SP em 2009, e desde então, sempre novas cicloviagens não saíram do papel. Dessa vez não poderia escapar. Havia saído do emprego, planejado me mudar de cidade, nada poderia me impedir.

De volta a São Paulo, ainda no Domingo, comecei a organizar as coisas para a viagem. Minha bicicleta era simples, mas com certeza agüentaria todo o trajeto com segurança. O grande problema era que não estava equipada com bagageiro. Esse detalhe posteriormente se mostraria fundamental para o desenvolvimento de uma viagem agradável. Mas em São Paulo, com apenas a segunda-feira para planejar e sem chance de desistir ou de postergar a viagem, levar apenas uma mochila com peças de roupas, água e alguns petiscos, parecia-me uma ideia fantástica. Tracei a rota, marquei as paradas onde iria pernoitar, coloquei todo o conteúdo da mochila para testar o peso e simulei também uma troca da câmara de ar, caso o pneu furasse. Este teste era fundamental, pois nunca havia removido um pneu. A vida toda andando de bicicleta e nunca havia tido problema com furos. Pareceu-me e é de fato bem simples. Deixei tudo bem no jeito para o dia seguinte sair cedo: às 06h00min horas já pretendia estar pedalando rumo à Alfenas/MG.

Antes de dormir confirmei com minha madrinha Maria Lucia, que mora em Campinas/SP, a disponibilidade de eu passar a noite lá. Falei também com Analice, amiga minha de infância e da faculdade, que mora em Espírito Santo do Pinhal/SP, que seria a segunda parada da viagem. Ela confirmou. Poderia dormir por lá, porém ela estaria em Alfenas em seu curso de pós-graduação e deixaria a chave da casa com a secretária em seu consultório para que eu pudesse pegar. Em Poços de Caldas/MG, ficaria em uma república de universitários. Meu contato era Bruno, amigo de meu irmão. Eu não o conhecia, mas ele foi bem solícito e disponibilizou seu lar para eu passar a terceira noite da viagem. Agora sim tudo bem resolvido e eu poderia deitar em paz e descansar para o dia seguinte.

Na manhã de terça-feira, acordei no horário planejado, por volta das 05h00min horas. A meta era sair o mais cedo possível, pois ia passar por um trecho da Marginal Tietê para poder pegar a Rodovia dos Bandeirantes com sentido à Campinas/SP, e queria fazê-lo enquanto o tráfego estivesse o menos intenso possível. Tomei um belo café da manhã, reforçado mesmo, bem diferente do que eu costumeiramente como, chequei tudo e parti.

Logo na saída um resquício de um chuvisqueiro qualquer e no viaduto da Pompéia, um arco-íris indicava que havia sido dada a largada! Um pouco mais a frente vi uma das imagens mais marcantes da viagem: o nascer do sol sobre uma ponte que atravessa o Rio Tietê. Uma imagem fantástica de um Rio tão belo que o homem teve a infelicidade de quase destruí-lo completamente na parte em que atravessa a capital paulista. Certamente é contemplada por poucos, como que se a Natureza fizesse isso em resposta ao descaso do homem com o que lhe é ofertado.

Continuando a viagem, havia pedalado uns 15 quilômetros quando o pneu traseiro furou pela primeira vez. Muito precocemente eu achei. Não queria desanimar e fui logo dando um jeito. Peguei o kit de remendo e mãos à obra. Removi a roda, retirei a câmara de ar e enchi-a para observar onde era o vazamento. Eram dois furos, porém um deles eu não conseguia remendar. Andei um pouco pelo acostamento até encontrar uma entrada que dava em um bairro já periférico da cidade de São Paulo. Andei um bocado à pé, cerca de uns 2 km, até encontrar uma bicicletaria.  Lá aproveitei e comprei um retrovisor, além de trocar aquela câmara furada por uma nova e levar uma câmara reserva para caso houvesse outro incidente semelhante. Amigos já haviam me alertado sobre os acostamentos dessas rodovias de maior volume de caminhões. Eles ficam cheios de araminhos e objetos pérfuro-cortantes que vão se soltando desses veículos maiores e acabam por furar os pneus da bicicleta.

Percorri em um ritmo relativamente bom até exatamente a frente do parque de diversões Hopi Hari. Lá novamente tive problemas com o pneu. Dessa vez troquei logo a câmara de ar furada pela nova, enchi-a com a bombinha que levava comigo e fui até Campinas. Essa minha bombinha de mão não era lá essas coisas, portanto o pneu não estava numa calibragem legal e eu custava pedalar, pois a bicicleta parecia bem mais pesada do que ela realmente é. Na entrada da cidade a primeira coisa que fiz foi procurar um posto de gasolina e encher adequadamente o pneu em um compressor de ar decente para terminar de chegar ao apartamento de minha tia. Guardei a bicicleta juntamente com as dos outros moradores do prédio e subi. Lá fui logo tratando de colocar a roupa que estava pedalando na máquina e fui para o banho. Uma das sensações mais incríveis dessa vida é essa: depois de um dia todo de cicloviagem, perrengues, pneus furados, você chegar ao seu destino, tomar um belo banho e ter onde descansar o corpo.  Minha madrinha chegou do trabalho junto com seu marido. Comemos, conversamos bastante e aproveitamos para matarmos a saudade. Antes de deitar, resolvi deixar em Campinas algumas roupas que estavam fazendo muito volume na mochila e eu certamente não precisaria delas. Essa alteração no peso da mochila foi muito válida, porque durante todo o dia pedalando a sensação que dá é a de que ela vai ficando mais pesada a cada quilômetro, e quanto mais leve ela estivesse, mais prazerosa seria a viagem.

Atrasei-me um pouco para sair de Campinas. Na verdade estava contando com um bom rendimento durante as pedaladas e isso se confirmou. Atravessei toda a cidade de Campinas e peguei a estrada sentido Mogi Guaçu/SP. O tempo estava firme, céu limpo e muito sol. Almocei em Mogi Guaçu e dali até Espírito Santo do Pinhal/SP seriam mais ou menos 40 km. Após o almoço, o tempo começou a dar uma guinada incrível. Uma tempestade se formava e eu já tratei logo de deixar a capa de chuva que tinha ganhado de tio David, esposo de minha madrinha Maria Lúcia, no jeito para vesti-la. Pedalar na tempestade foi uma mistura de prazer, apreensão, e sensação de estar desafiando a natureza, obviamente, respeitando a sua magnitude. Na cidade, fui procurar o consultório de Ranieri e Analice, o casal de amigos que me emprestara a chave de sua residência para que eu passasse a noite lá. Conheci a secretária deles, peguei a chave com ela e fui conhecer a casa que ficava nos fundos do consultório. Deixei minhas coisas no chão da sala mesmo e realizei o mesmo ritual da noite anterior na casa de Tia Maria Lúcia. Eles moravam bem próximo da praça da igreja Matriz, e fui até lá para comer um lanche no trailer que Analice tinha me sugerido. Era um trailer bem simples, como os de Alfenas mesmo: mesinhas de plástico, tubos de maionese na mesa e um lanche bem saboroso. Valeu a indicação! Comprei umas coisinhas para passar a noite, algo para o café da manhã e uma garrafa de vinho para retribuir a generosidade do casal para comigo. Voltei para casa, abri uma latinha de cerveja e comecei a assistir televisão. Parece brincadeira, mas cochilei antes mesmo de terminar de beber essa primeira lata.

O destino agora era Poços de Caldas/MG. Era o dia em que menos pedalaria em quilometragem, porém era o que mais ganharia em elevação. Faria o caminho por Andradas/MG e subiria até Poços. O pneu acabou furando novamente no início da subida da Serra e dessa vez eu já estava com a câmara reserva furada na mochila. Tentei remendar a câmara que estava usando, mas havia um furo que eu não conseguia achar. Eu enchia o pneu e ele não vazava, porém quando subia na bicicleta e pedalava ele começava a murchar. Fui assim até Poços de Caldas. Lá, novamente começou a chover. Eu estava em um bairro do subúrbio e procurava um lugar para almoçar. Acabei achando um self-service à vontade bem barato. Comida bem simples. Comi, bebi um refrigerante de 1 litro e fiquei muitíssimo satisfeito, ainda mais quando a dona do estabelecimento cobrou menos de mim, pois achou que eu havia comido muito pouco. Coisas da vida. Agora a missão era achar uma bicicletaria para reparar minhas câmaras de ar, ambas furadas.

Descendo a rua do restaurante onde almocei havia uma bicicletaria. Indaguei o proprietário se havia possibilidade dele fazer os reparos. Disse-me ele que o funcionário responsável pela manutenção estava de folga naquele dia e que ele não poderia me ajudar. Indicou-me outra bicicletaria mais pro interior do bairro. Fui até o local indicado, mas estava fechado. Decepcionante. Uma bicicletaria fechada, outra que não prestava o serviço e eu com os pneus furados. Subindo o morro da primeira bicicletaria, dois borracheiros chamaram-me e quiseram saber o que se passava. Falei-lhes sobre o problema do pneu furado e que necessitava remendá-lo, porém o dono da bicicletaria não fazia esse serviço. Eles de imediato se colocaram a disposição para me ajudar. Repararam a câmara que estava na bicicleta e a que trazia na mochila também. Paguei-lhes, agradeci e parti sob a forte chuva que caía em Poços de Caldas. Atravessei toda a cidade até encontrar o endereço da República dos universitários, onde Bruno morava. Receberam-me muito bem e deixaram-me à vontade. Coloquei minhas coisas na sala, pois dormiria ali. Eles foram para uma festa da faculdade e eu atrás de comida. Dei uma volta pela redondeza à procura de um trailer, lanchonete, ou algo semelhante. Não encontrei nada que me agradasse, mas no passeio já fui conhecendo o caminho pelo qual sairia da cidade na manhã seguinte. Eles moravam bem próximos à saída de Poços que eu pegaria para ir pra Alfenas. Pedi um lanche pelo telefone mesmo, comi e logo que deitei, apaguei. Acordei somente com a chegada do pessoal que estava na festa. Eles estavam bem alterados e falavam muito alto. Fiquei um tempo razoável até adormecer novamente.

Durante toda a viagem estava mantendo contato com algumas pessoas mais próximas. Uma dessas pessoas era Carlos Eduardo, o Du. Du é um grande amigo. Foi juntos que fizemos uma cicloviagem de Alfenas/MG até Aparecida/SP. Era nossa primeira cicloviagem e foi fantasticamente improvisada. Desde lá nunca mais havíamos pedalado juntos. Os rumos que a vida tomou, trabalho, e tudo o mais não nos deram essa oportunidade. Dessa vez ele acabara de chegar de uma cicloviagem que fez até Montevidéu, capital do Uruguai, e estava descansando em Alfenas. Fomos combinando durante esses três dias um possível encontro no meio do caminho entre Alfenas e Poços.

Amanheceu o quarto dia da viagem. Vesti minha roupa, ajeitei as coisas na mochila, fiz os últimos contatos com Du sobre nosso encontro e parti. Logo na saída de Poços de Caldas, sobe-se a serra de São Domingos, porém antes de chegar ao final da subida, o lanche da noite passada me custou uma “parada de emergência”. Já aliviado, continuei a subida. Uma das paisagens mais impressionantes da viagem estava ali. Um horizonte de montanhas e cores que deixa-nos de queixo caído. Os próximos quilômetros foram de descida e alta velocidade. Nessa hora a adrenalina dá o toque especial e realça a sensação de liberdade que durante toda a cicloviagem já é pulsante. Decidi que não almoçaria e apenas faria um lanche breve para ganhar tempo. Fiz isso em um posto de gasolina após passar a cidade de Campestre. Já chegando próximo ao trevo de Serrania, finalmente encontrei Du, vindo do lado oposto da pista.

Paramos ali por um tempo. Conversa vai, conversa vem, saímos rumo à Alfenas. Antes de chegar em Serrania, paramos em uma venda de beira de estrada para tomar uma garapa. Sentamos para esperar o caldo de cana e uma cena bem curiosa aconteceu ali: um pneu de caminhão desceu a mil pelo acostamento da rodovia. Situação digna de desenho animado! Depois fui saber que é uma coisa que acontece até com alguma certa freqüência, mas até hoje foi a única vez que vi.

Em Serrania decidimos terminar o trajeto até Alfenas pela estrada de terra que ligam os dois municípios. Já estava bem cansado nesse final de viagem. A impressão que eu tinha era a de que meu corpo havia se programado exatamente para aqueles quatro dias. Aqueles 392 quilômetros. A mochila já incomodava demais. Sempre que parávamos para uma hidratação, um descanso, e eu tinha a oportunidade de ficar sem a mochila, sentia um alívio inacreditável. Porém, ali, prestes a chegar à Alfenas, sentia que tudo havia valido a pena.

Enfim chegamos. Juntos, eu e Du, fomos pedalando até uma lanchonete tomar um açaí. Brindar ali mais uma cicloviagem concluída e também nossa amizade. Muito do que utilizei na viagem tem embasamento nas dicas que Du me passou, fruto da experiência de suas cicloviagens anteriores. Sou bastante grato a ele por isso.

Por vezes menosprezamos nossa capacidade, porém tudo que precisamos para conseguir algo está em nós mesmos. Pegar uma mochila, encher de roupas, água, ferramentas de bicicleta, sair pedalando de São Paulo até Alfenas pode parecer algo extraordinário ou pelo menos incomum, mas a partir do momento que acreditamos ser possível, esse feito começa a ser realizado. Eu precisava mudar. Deixar velhas certezas para trás. Ir desapegando daquilo que já não me era necessário. Continuar em frente e apenas com o que eu precisava para ser de fato feliz. E assim tudo começa: acreditando que somos capazes. Capazes de mudar. De realizar. Tenha fé em você e viva. Vai dar certo.


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Cris outubro 26, 2016 em 11:09 pm

Brilhou!! 👏👏👏👏

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Alexandre Teodoro janeiro 22, 2018 em 5:43 pm

Já havia escutado alguns comentários dessa cicloviagem conversando com o LG, entre um gole e outro de cerveja no bar do Tié. Hoje ao ler o relato pude me sentir mais “dentro” dela, o sabor e o prazer que uma aventura dessas proporciona é realmente muito único, e a eficácia dos conselhos do Du (que também está se tornando um grande amigo) também é bem real. Hahaha
Parabéns pela vivência PS, espero que consigamos pedalar juntos por aí qualquer dia!

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