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Literatura de aventura.

O pássaro e a roda

Anos atrás durante uma viagem de bicicleta que fiz do interior de Minas à capital do nosso vizinho Uruguai, fui agraciado por um ato quase milagroso de ressurreição. Sim, parece exagero, mas o simbolismo é o que faz o conto ganhar seu charme.

Era um dia comum como qualquer outro de céu cinzento e fechado. Havia acabado de deixar a casa de Nelson na ilha de Florianópolis onde passei duas noites agradáveis na presença do amigo e sua esposa.  Boa prosa, comida caseira e muita conversa fiada. Naquele dia eu deveria alcançar a cidade de Laguna, cento e poucos quilômetros a minha frente.

Meu caminho por aquelas bandas de Santa Catarina era feito todo pelo acostamento da BR 101, rodovia que oficialmente se inicia lá em Touros no nordeste e termina em São José do Norte,  Rio Grande do Sul. O trecho em que eu transitava, por muitos anos ficou marcado pelo alto número de acidentes com vítimas fatais.  No passado a BR 101 era uma rota com tráfego muito intenso de caminhões por vias que ainda não eram duplicadas. Hoje em dia a coisa melhorou bastante, mas ainda assim a sua fama atormenta muito motorista que passa por ali.

Depois do almoço, que aconteceu em um posto de gasolina no meio do caminho, e vale aqui citar o seu nome pelo atendimento impecável, comida saborosa, limpa e com preço justo; Restaurante Morro dos Cavalos;  segui viagem em ritmo preguiçoso curtindo vagarosamente as memórias de uma refeição estupenda que acabara de deixar para trás. Mais tarde, algumas dezenas de centenas de quilômetros a frente eu viria a descobrir que aquela tinha sido a última grande refeição da viagem, todas as outras após foram boas, porém nada demais.

Eu pedalava com tanta preguiça que mal era capaz de manter a bicicleta em pé. Observava a vegetação, os carros apressados e os caminhoneiros que pela vida corrida de entregas, talvez, só voltariam a ver suas esposas e filhos meses depois quando eu já estaria de volta no conforto de meu sofá lá em minas, lendo um livro repetido ou simplesmente gastando o meu tempo lembrando-me das histórias desta viagem como estou a fazer agora. De repente, ao olhar para a estrada marginal notei que um casal muito mimoso de pássaros havia acabado de pousar bem no meio da pista. Por um segundo achei arriscado demais a manobra de pouso daqueles passarinhos e foi necessário mais um segundo para eu ter certeza de que eu estava certo. Um carro aproximou em alta velocidade e acertou em cheio uma das aves. Eu virei a cabeça, parcialmente com os olhos semiabertos daquele tipo que acredita na salvação, mas não quer enfrentar a morte e fiquei torcendo para que as rodas de trás não esmagassem o bichinho no chão. Peço permissão as autoridades religiosas do mundo, mas naquele momento eu me vi acima de qualquer Moisés fazendo algo bem mais grandioso do que simplesmente abrir um mar com o movimento das mãos. E num passe sobrenatural de alguém que achou ter poderes da mente, acredite quem quiser e é bem provável que ninguém deva acreditar, consegui  fazer com que o pássaro se esquivasse das rodas do carro por miseráveis milímetros, escala tão pequena que não caberia em uma régua escolar. Talvez fosse possível aferir a distância entre o pássaro e o pneu com o auxílio de um paquímetro, mas isso não mudaria em nada a história.

Entrava em cena um pseudo médico ciclista, que de entendimento acadêmico na área da saúde, só tinha a aprovação ética em querer ver o paciente bem. Apressado, joguei a bicicleta no canteiro do acostamento e corri para a pista antes que outro carro aparecesse para acabar de vez com o meu momento de canonização. O pássaro estava molengo, sem reação e de olhos fechados. Peguei a pouca água que ainda me restava na bagagem e joguei sobre sua cabeça. Com o dedão da mão esquerda apertava o seu tórax e com a boca eu tentava, pateticamente, iniciar uma respiração boca-a-bico com o passarinho. Uma assoprada daqui, outra apertada dali, um cachoalhão, uma gota de água no bico, um pouco de massagem cardíaca e mais uma inflada em seus pulmões. Acho que devo ter ficado uns dez minutos neste processo cíclico antes de me explodir de alegria ao ver os olhos do passarinho se abrirem. A platéia inexistente na sua forma humana, melhor assim pois foi um humano que quase havia tirado a vida do bichinho, logo foi ao delírio. As plantas dançavam com os ventos, as árvores cuspiam suas folhas como confetes de carnaval, as formigas saiam em procissão e o cachorro, que de longe observava a refeição fácil que eu segurava nas mãos, logo abaixou o rabo e fugiu de fininho. Ninguém era capaz de enfrentar a força da natureza que eu sentia dentro de mim.

O pássaro não quis aceitar as recomendações médicas de se manter em repouso por algumas horas e logo levantou voo novamente, ainda um pouco embriagado pelo susto. O resto da viagem foi preenchido por um sentimento profundo de gratidão e a sensação de que nada ruim poderia me acontecer. E de fato, não aconteceu.

 

 

 

novembro 8, 2016 2 comentários
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