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Das montanhas de Minas às praias da capital uruguaia

escrito por Eduardo Lemos julho 22, 2016

De todas as vezes que saí para uma viagem de bicicleta sempre tive ao meu lado um bom amigo para dividir, em tempo real, as glórias e os fracassos de um intenso dia de pedalada. Como era gostoso sentar à sombra de uma árvore robusta de folhas graúdas depois de enfrentar uma longa subida em um dia de calor fervente e se queixar, com o amigo ao lado, das dificuldades que enfrentamos até ali. Entrávamos em sintonia nas angústias até que o desconforto dava lugar a boas risadas que, por fim, nos serviam de combustível para rodar alguns quilômetros a mais até que repetindo o ritual, nos acolhíamos debaixo de uma outra árvore.

Desta vez a história seria diferente. Aqueles velhos roteiros que outrora me fizeram abraçar alguns poucos estados brasileiros agora iriam me lançar para uma viagem internacional. Estava saindo do meu país, pela primeira vez, em cima de uma bicicleta.

Eu, Canarinha e o mundo.

Viajar sozinho era uma novidade de muitos estranhamentos pra mim. Leituras aventurísticas como aquelas de Amyr Klink acabaram por abrandar um pouco os medos e as incertezas que andavam tirando o meu sono na véspera da viagem. Amyr, velejador solitário, realizou algumas das maiores façanhas de nosso tempo administrando seus medos e planejando suas viagens de maneira impecável. Diferente de suas aventuras pelos oceanos do mundo, eu sabia que uma viagem sobre uma bicicleta poderia ser levada um pouco menos a sério. Não que eu me sentisse totalmente livre a ponto de negligenciar detalhes importantes na construção do projeto, mas eu sabia que poderia ter em mãos um roteiro mais aberto. O tipo de viagem me permitia isso; não ficaria muitos quilômetros longe da civilização embora estivesse certo de que cruzaria por alguns caminhos de pouca habitação.

E foi assim, entre arrumações e afetos, que naquela manhã quente de sexta-feira do dia dezessete de outubro deixei a pequena cidade de Alfenas no Sul – MG para embarcar em uma das experiências mais belas de minha vida.

Da despedida de pouca parte da família presente, de alguns vizinhos que saíam para o trabalho, ainda encontrei minha mãe, seu companheiro e meu irmão na saída da cidade. Passei por eles, parei para um último abraço e parti, seguindo os ventos de uma carreta que acabara de passar por ali.

As últimas abanadas daquelas mãos que me brindavam com sinceros “até logo” foram se perdendo no horizonte. Os meus olhos, míopes por uma peça pregada pela genética, se tornaram ainda mais ofuscados quando as lágrimas os encheram de alegria e emoção.

À minha frente estava uma longa e desordenada estrada tipicamente mineira. O dia, que amanhecera “morno”, preparava aquela que seria a surpresa mais desafiadora de toda a viagem: três dias de muito morro sob um sol na casa de seus 40 graus.

Insolação foi o troféu do primeiro dia de viagem. Pedalar durante a noite a premiação do segundo dia e a falta de almoço estourou os fogos de artifício da minha chegada à cidade de São José dos Campos, no estado de São Paulo.

De lá, subi a Serra do Mar debaixo de uma chuva fina e fria. Senti as piores dores musculares da viagem quando, passados aqueles três primeiros dias de muita superação, enrijeci o meu corpo por completo na tensão de estar iniciando a descida de uma serra sem acostamentos, com visibilidade baixa e na companhia de incontáveis caminhões.

Serra do Mar

E de repente a chuva parou, o acostamento surgiu e uma clareira se abriu entre as copas fechadas das matas laterais. Revelou-se ao fundo uma das mais belas paisagens já vistas por meus olhos. Daquela sacada dos deuses eu pude avistar a imensidão do Atlântico, a infinitude das praias do litoral paulista e as contorcidas montanhas que formam o imponente paredão da Serra do Mar.

E de Caraguatatuba fui ainda enfrentar alguns sobes e desces na paradisíaca região de Maresias e Boiçucanga. Acampei pela primeira vez em um quintal de casa. Bati recordes de velocidade e desempenho atravessando a Baixada Santista e fui me repousar em Peruíbe, acolhido em uma casa de avó. Cruzei por mares de banana em uma das maiores regiões produtoras desses potássios no Brasil e perdi a chance de justificar meu voto nas eleições por puro desejo de chegar ainda com luz do dia à cidade de Registro.

Tive a pior noite de sono num barato hotelzinho que estava bombardeado de sequestradores de hemácias, ou pernilongos, como queiram chamar. Tive também o mais patético avanço em viagens quando acordei às cinco horas da madrugada para descobrir que o pneu da bicicleta estava furado e que não conseguiria sair da cidade antes das 9 h 30 min. Cheguei a Cajati, míseros quilômetros à frente, e resolvi abrir mão daquele dia que começara às avessas. Entrei no estado do Paraná sem saber que já estava por lá e perdi a chance boba de comemorar a conquista embaixo de uma daquelas plaquinhas de fronteira. Fui apresentado à Estrada da Graciosa e acreditei que a viagem já poderia ter acabado por ali. Cheguei em Morretes, a terra do barreado, e só fui descobrir os detalhes deste prato culinário quando já estava saindo do estado, o que não durou muito, o litoral do Paraná é minusculamente charmoso. Ah, sou vegetariano.

Em Guaratuba brindei um dia de milionário ao me hospedar em uma pousada de frente para o mar. O que a ocasião não mostrava é que o quarto era minúsculo e a hospedagem tinha preço de comida a quilo de mercadão.

Entrei em Santa Catarina e aprendi a chamar São Francisco do Sul de São Chico. Conheci um casal de cicloturistas da Espanha que saíram para o mundo há quatro anos e visitei o tão sonhado Museu Nacional do Mar. Ainda sem lugar para me abrigar entrei no gingado do acaso e, por tabela, não só encontrei uma segunda mãe na cidade como também recebi o carinho de sua hospedagem por dois preguiçosos dias. Tudo uma conspiração do universo que chegava a dar nó no cérebro quando eu tentava encontrar uma lógica para tudo aquilo.

Em Navegantes ganhei um passeio turístico com direito a guia e tudo mais e de quebra transformei o que era uma amizade virtual, em real. Mais uma vez como frequentemente aconteceu nesta viagem, fiz amigos e construí famílias para a vida toda.

Em Florianópolis pude reviver um pouco dos meus abandonados anos de engenharia que cursei ilha. Hospedei-me por dois dias na casa daquele que apelidei ser a lenda viva do cicloturismo brasileiro, Nelson Neto.

E laguna não é o mesmo que lagoa. Finalmente alcançava a cidade de Laguna, última parada antes de invadir o Rio Grande do Sul. Já começava a sentir os ventos que assopram esta extensa região de relevos baixos e me deliciava com as intermináveis plantações de arroz que enfeitavam as laterais da BR-101. Folhinhas verdes e finas de se perder de vista atoladas em extensos piscinões de terras alagadas. Um salmão bastava para termos ali o maior menu japonês da história das galáxias.

Deixei Santa Catarina com um saldo de memórias belíssimas e com uma vida “ressuscitada” de um pássaro atropelado. Brinquei de 192 e recebi as palmas de uma plateia imaginária.

Reserva do Taim

Em Torres minha alma perdeu seu fôlego pela enésima vez. Vim, brotando nas águas rasas do Atlântico, senhores paredões de muita imponência e respeito. Os espíritos brindavam a vida por ali.

Já na terra do chimarrão quase me afoguei nas estradas ao passar por intermináveis lagoas, lagos e lagunas até alcançar a quase inexistente cidade de Capivari do Sul. Acampei na varanda de um restaurante. Em Osório senti no peito a força dos ventos que colocam a girar o maior parque eólico da América Latina. Entendi que as árvores por lá não estavam tentando fugir de ninguém e que foram os estrondosos sopros da mãe natureza que as borraram naquela paisagem lavada pela falta de abrigos.

Experimentei Mostardas mas fui mesmo me encantar com a cidade de Tavares. Como pode uma cidade tão pequena, tão longe de tudo e de todos, ter um dos povos mais acolhedores e simpáticos deste país? Talvez seja influência das centenas de milhares de belas aves que por lá repousam todos os anos vindas de todos os cantos do planeta. E num golpe de pura bondade do destino, fui apresentado a uma família de ouro na portuária São José do Norte. Senti a história brotar naquelas ruas através das palavras do anfitrião.

Da cidade das grandes embarcações saí, debaixo de chuva, para o último grande desafio em solo brasileiro. Das aulas de geografia do ensino fundamental revivi memórias da infância e o sonho de conhecer a tão citada cidade de Chuí. Acabara de embarcar para uma programada etapa de dois dias de viagem até o extremo sul do Brasil. Chuva, ventos gelados e problemas com a bicicleta me fizeram trocar, no primeiro dia da jornada, um aventureiro acampamento em posto de gasolina por um seguro e aconchegante galpão aos fundos de uma Brigada Militar. Ah, como fui bem acolhido e recebido pelos lugares em que passei.

E no segundo dia, na tentativa de alcançar a fronteira do Brasil, embrenhei-me nas alagadas terras da Reserva do Taim. Vi muitos animais silvestres mortos pela pressa do homem e suas máquinas, mas vi também muita vida bela em liberdade. Tentei brincar de esconde-esconde com algumas tartarugas mas desisti quando elas se recusaram a sair de casa. E pensando estar próximo ao Uruguai tive que adiar essa conquista. Dessa vez não me escapou o posto de gasolina.

E finalmente, depois de três longos dias percorrendo a quase inóspita Rota Extremo Sul, cheguei à cidade brasileira de dois idiomas. Das criações do meu imaginário de uma cidade aos moldes coloniais restaram-se poucas ruas pavimentadas, muito comércio, construções mal conservadas e cheiro de muito consumismo. Chuí não era o eu que pensava ser, mas foi deliciosamente bom conhecê-la como realmente ela é.

Posto de Gasolina

“Tarjeta Internacional de Entrada”. Finalmente estava pronto para dar o último grande passo na conquista de um sonho. Mais uma vez a miopia tomou um belo banho de salmoura. O sr. Atlântico logo veio me dar as mãos e dizer: vou estar contigo em todos os momentos até que você chegue a salvo e feliz ao seu destino final, a capital da República Oriental do Uruguai.

Encantei-me com as primeiras cores do Uruguai e me casei com Punta del Diablo quando a conheci. Falava espanhol tão bem quanto um berimbau desafinado. Traí. Desfiz o meu matrimônio com as encantadoras curvas “del Diablo” quando me deitei nas majestosas praias de Cabo Polônio. Troquei as contagens de quilometragem pelos números de nasceres do sol que ainda me restavam até Montevidéu.

E ele veio, o último brilho do acordar da mãe estrela antes de entrarmos de corpo e alma nas terras dos revolucionários Tupamaros. Os deuses do clima me brindaram a chegada com um gelado banho vindo dos céus.

Socava os ares enquanto proferia palavras sujas de alegria. A insanidade mental assumiu as rédeas dos meus atos até que finalmente, no deleite de um aconchegante albergue de Montevidéu, caí para o repouso da vitória.

E após 34 dias de viagem, 2.930 quilômetros rodados, eu havia finalizado uma das mais intensas páginas da minha vida, que ainda guardava uma memorável surpresa: o encontro com José Alberto Mujica Cordano, o “Pepe”, um dos presidentes mais amados do planeta. A surpresa veio em forma de combo: o famoso fusquinha azul calcinha que já havia sido negado à venda pelo valor de um milhão de dólares, a histórica personagem Lucía Topolansky, também apresentada como primeira dama, e claro, a figura mais carismática da atual política mundial, o presidente do Uruguai, Mujica. Um encontro simples como manda o figurino. Área rural em uma região de baixa renda ladeada por cãezinhos revoltados com aquele viajante de trajes lunáticos. Um demorado aperto de mão, algumas palavras de admiração e o espanto de Pepe ao descobrir que eu partira de Minas Gerais, o que acabou culminando nas suas sinceras palavras de sorte. Tudo cuidadosamente organizado por aquelas mãos invisíveis citadas por Joseph Campbell no livro O Poder do Mito. A cereja do bolo ou a chave de ouro, seja qual for a denominação para aquele encontro, pra mim foi a definição de que não existem hierarquias entre homens de bom coração.

Dos grãos de areia das praias que nunca se repetiam aos distintos cantos dos cardeais das planícies do sul, tudo era singularmente magnífico e emocionante. E por fim, posso dizer com a ternura de uma alma viajada: fiz amigos para a vida toda e memórias para muitas gerações.

Viajar é bom, de bici então, não tem preço.

ESTA VIAGEM ACONTECEU EM OUTUBRO DE 2014 E FOI PUBLICADA NA EDIÇÃO DE MARÇO DE 2015 DA REVISTA BICICLETA.

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