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O Ouro que Dom Pedro deixou para trás – Parte 1

escrito por Eduardo Lemos setembro 24, 2016

O INIMIGO QUE NÃO EXISTIU

Da partida ao primeiro acampamento

O relógio marcava quase uma hora da manhã quando consegui me deitar. Estava bastante ansioso e inquieto com a forte onda de calor que tomara conta da cidade naquela noite. Na cama o suor que escorria por entre o pescoço molhava o travesseiro e parte das minhas roupas. Estava impossível relaxar, não parava um minuto sequer quieto. O tempo andava acelerado e o pensamento de que eu precisava dormir logo afastava ainda mais o sono. Não sei como e quando, mas em algum momento da madrugada eu finalmente apaguei.

As três horas e trinta minutos o despertador tocou. Não me lembro muito bem mas talvez eu tenha até acordado um pouco antes. Abri os olhos sem um pingo de sono. Estava agitado e cansado. Enquanto ia ao banheiro para tomar uma ducha, Débora preparava um delicioso café da manhã na cozinha. No cardápio tínhamos suco natural de laranja, biscoitos, barras de cereal, pão na chapa com manteiga, ovos mexidos e pizza amanhecida. Embora estivesse diante de um verdadeiro banquete de rei, naquela momento mal consegui tocar na comida. A tensão que roubara meu apetite também me presenteou com uma dor muita incômoda na base do pescoço. Nada grave, provavelmente uma contração muscular mais acentuada em resposta a ansiedade do momento.

As cinco horas da manhã Marcell e Rachel chegaram ao apartamento. Tentávamos acelerar ao máximo os trabalhos de montagem pois queríamos estar nas ruas antes que os primeiros raios de sol revelassem a loucura da cidade. Ainda não havia testado a dirigibilidade da bicicleta equipada quando então decidi dar uma voltinha pela garagem do prédio. Estava preocupado com a resistência dos bagageiros e a posição mais elevada que se encontravam os alforjes dianteiros. O centro de gravidade havia se alterado e consequentemente a minha noção equilíbrio. Apesar do amadorismo em tal transporte de cargas me senti bastante confiante para seguir caminho até Paraty. Canarinha já havia provado em outras viagem que é uma ótima companheira de estrada.

Na rua o trânsito crescente de carros e pedestres encerrava de vez a vontade de partir ainda pela madrugada. Anteriormente, durante algumas pesquisas que fiz sobre os caminhos da Estrada Real acabei identificando que o ponto mais crítico da viagem em relação a movimentação de veículos automotores se dava justamente no perímetro urbano de Belo Horizonte. Não tenho problemas em pedalar ao lado de carros e ônibus, mas sempre me sinto bastante desconfortável quando este encontro acontece dentro da cidade. Há sempre um motorista maluco circulando por aí.

Eram quase sete horas da manhã quando Marcell conseguiu  fixar seu ultimo alforje. Eu estava impaciente e queria sair logo dali. Nunca me dei bem com esperas, aliás, esta má administração psicológica me rendeu uma síndrome que carrego desde a infância. A síndrome do intestino irritável, como é comumentente conhecida, é uma alteração psicossomática que ataca o intestino em situações de estresse. Apesar de não ter cura ela não nos traz nenhum risco a saúde, apenas nos causa um desconforto abdominal que pode resultar em prisão de ventre ou numa “bambeira” do intestino. As vezes nem acontece nada, só ficamos na desconfiança. Em casos mais extremos esta síndrome pode ser sim um problema na vida das pessoas, ao ponto de impedi-las de fazer atividades banais do dia a dia como enfrentar filas, aguardar um ônibus, ir ao supermercado e até ir trabalhar. A boa notícia é que tudo isso pode ser controlado com uma boa alimentação e atividade física, aliás, comer bem e correr já está virando clichê médico.

Finalmente estávamos prontos para sair. Da calçada do prédio subi na bicicleta, fiz uma ultima conferência rápida nos equipamentos, zerei o marcador de quilometragem e vesti o capacete. Aflita ao meu lado, Débora aguardava nossa saída. Um abraço, um beijo e uma frase ao seus ouvidos –  Depois do BH Shopping estamos em Paraty. Era assim que eu enxergava esta etapa da viagem. O BH Shopping marcava a nossa saída da rodovia BR 356 e a nossa inserção em estradas mais tranquilas.  Uma vez longe dos carros em alta velocidade nossas atividades se resumiram em tarefas bem básicas como manter a bicicleta ajustada, alimentar-se bem, proteger-se do sol, beber bastante água e claro, ter o cuidado de não perder nenhum detalhe desta experiência maravilhosa que estávamos a viver.

O dia amanhecera frio em Belo Horizonte, nem dava para acreditar que poucas horas atrás uma forte onda de calor quase havia tirado o meu sono. O céu estava azul, nem um pingo de nuvens ou intenção de formá-las. Os fios de cabelo espetados sobre os braços logo foram se acomodando com a presença do sol que entrava por entre as copas das árvores e os prédios da cidade. Na rua íamos somando a cada esquina um novo olhar de espanto e curiosidade.

A caminho de Rio Acima – primeira cidade de pernoite do roteiro –  fizemos três paradas breves para alongamento e hidratação. Os primeiros dias em qualquer viagem de bicicleta são bastante importantes para ditar o ritmo dos dias subsequentes. A ansiedade e a tensão pré-viagem podem confundir os sentidos de nosso corpo e criar condições fantasiosas de dor e desconforto.

Nosso primeiro alongamento foi um pouco antes do trevo que marcava a saída da BR 356. Eu ainda não estava relaxado e sentia uma dor muito incômoda na base do pescoço. Sentia também sede, bastante. A boca seca era mais um sinal de que o corpo estava tenso, ansioso. Cinco minutos foi o tempo necessário para trazer a calma de volta e espantar o estresse.

A segunda e a terceira parada se deram na rodovia de Nova Lima e no pequeno trevo de Honório Bicalho, respectivamente. Ao parar pela segunda vez e feliz por ter deixado Belo Horizonte para trás, retirei o celular que estava na bolsa de guidão e sem nenhum enfeitamento enviei uma breve mensagem a Débora. – Já passamos o BH Shopping , logo mais estaremos em Paraty.

Em Honório Bicalho ficamos perdidos pela primeira vez na viagem, isto porque o distrito é minúsculo e muito bem sinalizado. Errar caminhos em lugares onde teoricamente não se deveria cometer equívocos era uma das poucas coisas que me irritava na expedição. Ao todo andamos mais de quinhentos e cinquenta quilômetros por estradas de terra, sempre guiados por um manual impresso que muitas vezes tinha como referência de manobra objetos como cercas e mata burros, porém foram as cidades os nossos piores inimigos logísticos. Perdíamos tempos preciosos com erros tolos. Na saída do vilarejo encontramos o primeiro totem oficial da Estrada Real. Estava instalado no jardim frontal de uma casa simples, sem muros, grades e muito bem preservada. Na parede externa, logo acima da janela onde provavelmente alguém se debruçava nos finais de tarde para ver o movimento da rua, havia uma placa com oferta tentadora: Vende-se chup-chup. Em algumas regiões do Brasil o  chup-chup é também conhecido por geladinho.  A iguaria simples é feita com refresco congelado armazenado em saquinhos plásticos destes que usamos para empacotar amendoim torrado em época de festa junina. Nosso almoço estava a menos de doze quilômetros dali e não era hora para pensar em sobremesas.

Um pouco antes do meio dia chegamos a cidade de Rio Acima. Na rua parávamos aleatoriamente os moradores da cidade buscando referências por bons restaurantes. Ao dizer bom estou me referindo ao  lugar onde serve-se comida à vontade por preço de pechincha. Trinta minutos mais tarde fomos atrás do campeão de indicações. As instruções para chegar ao local eram bastante simples, do tipo desce esta rua, vire a direita no bar do fulano e depois vai reto até o final. Nos perdemos mais uma vez.

O restaurante que nos foi indicado era de fato muito bom. Lugar limpo, arejado, servia uma refeição bem caprichada por um preço camarada. A comida era suficiente para saciar a fome do almoço e ainda calar o ronco do estômago na hora do jantar. A refeição veio acompanhada de uma jarra de água geladíssima, difícil de ser recusada. Me lembro que estava com tanta sede que acabei bebendo uns três copos cheios de água antes de olhar para a cara do Marcell que já sabia aquela água gelada iria tirar o meu apetite. Da metade do prato para frente eu comia de raiva. A dor no pescoço voltou a me atormentar após o almoço. Acredito que parte do incômodo surgiu com a inclinação que fiz durante a refeição buscando diminuir a distância entre o prato e a minha boca.

De volta as ruas saímos em busca de um mercado para comprar algumas garrafas de água. Sabíamos que as próximas horas seriam de pedaladas por estradas de terra onde até mesmo a presença de propriedades rurais eram escassas. Dentro da cidade ainda nos perdemos por mais duas vezes, agora por informações equivocadas dos moradores. Tempos depois fui descobrir, ao acompanhar uma amiga pela região, que é comum a confusão na cidade em relação a Estrada Real. O mesmo morro que me fizeram subir por duas vezes de barriga cheia foi o mesmo que ela também subiu equivocadamente de carro. Daquele momento em diante eu estabeleci uma regra de não tomar nenhuma direção duvidosa sem ao menos consultar três pessoas distintas. Nunca funcionou de fato como regra.

Alcançar a cidade de Acuruí não era nosso objetivo naquele momento, tão pouco se hospedar em Rio Acima. A idéia era montar acampamento em algum lugar entre estes municípios. O trecho que se seguia era marcado por um terreno bastante acidentado e íncrime. O sol, aos poucos, ia descendo pelo céu. Tinhamos pressa, pois logo a lua daria suas caras.

Por volta das quatro horas da tarde começamos a procurar um lugar para acampar. A dor no pescoço havia retornado e o cansaço acumulado começara a minar minhas reservas energéticas de forma assustadoramente rápida. Eu buscava, incansavelmente, por um sinal de queda d’água ou curso de rio na mata lateral. Precisava de água, muita água. O suor oleoso do corpo combinado com a poeira seca da estrada de terra já estavam me deixando com cara de tijolo, se é que existe esta comparação.

É comum aproveitarmos as descidas para ganhar velocidade e descansar um pouco as pernas, porém desta vez eu acabei descendo a serra bem devagar. O objetivo era manter os ouvidos atentos buscando encontrar qualquer ruido que nos apontasse para um curso de água, rio ou cachoeira. Não sei explicar muito bem os motivos que me levaram a percorrer aquele trecho lentamente, mas o fato é que esta escolha instintiva preparava uma bela surpresa pela frente.

Próximo ao final da descida notei que ao meu lado direito a mata encontrava-se um pouco mais aberta que o habitual, talvez uma trilha aberta pelo homem. Estacionei a minha bicicleta ao lado de uma árvore e pedi para que Marcell a vigiasse enquanto eu verificava se aquela entrada. Enquanto caminhava entre a vegetação parcialmente fechada percebi que o som que eu julgava ser das folhas das árvores tocadas pelo vento era na verdade o barulho de águas correntes. Apressei os meus passos até que a mata se abriu de vez e eu pude avistar um rio de águas cristalinas e margens formadas por pedrinhas brancas ovaladas. A felicidade explodiu dentro de mim. Voltei as pressas para a estrada e sem explicar muito o que havia visto convenci Marcell de que aquele era o lugar ideal para pernoitarmos.

Eu estava eufórico, não sabia se tomava banho de rio, se montava acampamento, preparava comida, lavava roupa ou se ficava apenas observando a paisagem. O sol foi quem ditou as regras. Mergulhar durante a noite era uma opção inviável tanto pelos riscos de acidente quanto pela temperatura congelante da água. Todas as outras opções eram relativamente simples de serem executadas no escuro com auxílio de lanternas. Foi assim então que me joguei no rio e fiquei por lá quase trinta minutos sem fazer absolutamente nada. Lavei o corpo, a alma e acidentalmente o celular que estava no bolso da bermuda. Ao descobrir que o aparelho telefônico ainda encontrava-se comigo ainda tive tempo de assistir seu último piscar de tela antes de se apagar completamente. Fiquei chateado pois não mais conseguiria me comunicar com o pessoal de casa. Até hoje não consigo entender como ele se manteve ligado por tanto tempo debaixo d’água e só entrou em colapso no momento exato em que eu o retirei do rio. Sem saber o que fazer abri o celular e o deixei debaixo do pouco sol que ainda restava no céu.

De banho tomado fui preparar o jantar. Estávamos carregando nos alforjes uma porção de legumes frescos para os primeiros dias de viagem. Tínhamos também também arroz, feijão liofilizado, temperos, macarrão, refresco em pó e claro, muita fome. Fatiei um pouco de cenoura e mandioquinha salsa, misturei com arroz cru e alho desidratado e uma pitada de sal. Coloquei tudo em uma panela com água e deixei cozinhar em fogo baixo por uns vinte minutos. Enquanto a comida ia chegando ao ponto fui buscar minhas garrafas de água que estavam as margens do rio. Certa vez li no livro O Recado do Morro de João Guimarães Rosa o relato curioso de alguns tropeiros que resfriavam garrafas de cerveja lançando-as amarradas em cordas dentro de rios. Obviamente não era a minha intenção. As garrafas só estavam as margens do rio porque as deixamos em repouso enquanto as pastilhas de cloro terminavam o processo de purificação.

Antes de dormir e depois de ter feito as tarefas de casa de lavar a louça e escovar os dentes ainda tirei um tempo para escrever em meu diário. O sono veio e eu nem percebi.

A meia noite em ponto abri os olhos assustado sem saber qual era o motivo do espanto. Deitado com a barriga para cima passei a observar os ruídos que vinham da vegetação. Eu não sabia, mas naquele momento Marcell também estava acordado dentro de sua barraca. De repente ouço um barulho grave como se algo pesado tivesse sido colocado próximo de nós. Sutilmente estico a mão direita para alcançar meu canivete quando sou surpreendido por uma forte rajada de luz. Pensava nas bicicletas estacionadas do lado de fora sem nenhum cadeado. Munido com o canivete e lanterna em mãos fui cuidadosamente abaixando o zíper de entrada da barraca quando novamente ouvi o ruído grave. Pensei por alguns segundos como estavam dispostos as nossas coisas no acampamento e então explosivamente me joguei para fora da barraca. Marcell imediatamente fez o mesmo. Ali reunia-se a dupla mais patética de cicloviajantes já vista na história da Estrada Real. Se naquele momento o nosso inimigo não fosse os raios e trovões marcando a chegada da chuva, certamente o amigo leitor não estaria lendo este relato hoje.

Não passou por minha cabeça em nenhum momento que poderíamos pegar chuva naquele dia. Da saída de Belo Horizonte até o momento em que o sol se pôs, não havia qualquer possibilidade visível de pegarmos uma chuva. Pelo menos pudemos manter nossas bagagens secas e dormir em paz.


VEJA TAMBÉM OS OUTROS CAPÍTULOS DESTA VIAGEM
INTRODUÇÃOPARTE 2

 


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2 comentários

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André Conrado dezembro 28, 2016 em 8:32 pm

Parabéns, Eduardo. Seu relato é inspirador e a forma como escreve não tem como não me remeter ao detalhe da escrita dos formalistas russos. A nanlogia que faz sobre o “Ouro que Dom Pedro deixou para trás” é fantástica. Pois, nos remete a uma análise históriano tange a história do Brasil colonial. Parabéns.

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Eduardo Lemos
Eduardo Lemos fevereiro 7, 2017 em 12:05 am

Meu caro André! Desculpe o atraso na resposta. Muito obrigado pelo elogio. Adorei sua análise sobre a minha escrita. Fico feliz que tenha gostado. Logo mais venho postar a continuação desta jornada. Um grande abraço pra ti!

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