Início Expedições O Ouro que Dom Pedro deixou para trás – Parte 2

O Ouro que Dom Pedro deixou para trás – Parte 2

escrito por Eduardo Lemos outubro 19, 2016

O CÃO E O COVEIRO
A tentativa de chegar em Glaura

O dia amanhecera bonito na região de Rio Cima. Acordar e saber que Acuruí, cidade onde faríamos a nossa parada para almoço, não estava distante, nos deixou um pouco preguiçosos no café da manhã. Marcell carregava em seus alforjes algumas ervas que ele havia comprado no mercado municipal de Belo Horizonte antes da viagem. As informações eram de que as folhas deveriam ser consumidas em forma de chá e sua atuação no organismo era de caráter anti-inflamatório e analgésico. Nós costumávamos tomar o chá todos os dias pela manhã e a noite depois do jantar. Apesar de ser muito crente em relação ao uso de plantas em medicina preventiva e alternativa, eu não estava levando muito a sério que aquela coleção de plantas desidratadas, que continha até folhas de camomila, poderia ter efeito em uma viagem relativamente curta como a nossa. Se o efeito era certo eu não poderia dizer, porém a única vez que senti dores nas pernas durante a viagem foi exatamente dois dias após eu ter abandonados os chás. Estava subindo os últimos quilômetros da Serra do Mar quando fui pego por fisgadas dolorosas na musculatura frontal da coxa esquerda.

O sol dava seus primeiros sinais de castigo. Daqui para frente vou poupar o leitor de ficar se cansando com os relatos de exaustão em morros intermináveis e sol escaldante, pois, teoricamente, todo brasileiro sabe como é o relevo em Minas Gerais.

Era quase uma hora da tarde quando chegamos ao trevo de Acuruí. A cidade que pertence a rota oficial da Estrada Real está localizada em uma das regiões mais aquíferas dos entornos da capital mineira e tem como vizinhos importantes as serras da Gandarela, Caraça, Capanema e um pouco mais distante a serra do Cipó. A cidade fica no pé de um vale a beira da represa Rio das Pedras, que na tradução para tupi-guarani forma o nome da cidade. Acuruí ainda preserva sua arquitetura peculiar da época em que era uma vila estratégica para tropeiros e mineradores de ouro. Depois que o ouro na região se esgotou muitas famílias abandonaram o lugar deixando para trás somente as pessoas mais idosas ou com crianças muito pequenas em casa. Assim a cidade se conservou tendo pouco crescimento desde então.

Entramos em Acuruí com calma procurando por alguém nas ruas que pudesse nos dar uma indicação de algum lugar para comer, porém quanto mais adentrávamos na cidade menos esperançoso eu ficava de encontrar um restaurante aberto aquela hora. As ruas estavam vazias e pouquíssimas casas tinham suas janelas abertas, apesar do forte calor.

Pedalando sem rumo pela cidade acabei avistando, algumas dezenas de metros à frente, um senhor trabalhando naquele que deveria ser o pouco habitado cemitério da cidade. Homem magro de pele enrugada e marcada pelo sol, vestindo uma camisa de algodão molhada por suor e um boné que mal dava para definir a cor. Naquele terreno com enxada em mãos, retirava os matinhos que cresciam ao redor dos túmulos enquanto aguardava, pacientemente, a chegada de um novo e eterno hóspede. A sua frente, do outro lado do muro, encontrava-se a igreja de Nossa Senhora do Rosário, construída no século dezoito para celebrar missas para os negros e escravos.

Nos jardins desta igreja acabei me surpreendendo ao encontrar uma das maiores matilhas que já havia visto na vida. A cada cão que latia com a nossa presença, outros dois se revelavam no meio do mato. Surgiam cães em proporções exponenciais. Se não fosse pelo encontro prévio que tivemos com o coveiro, e até então não havíamos encontrado ninguém pelas ruas, eu desconfiaria que Acuruí era governada por aqueles bichinhos enfurecidos.

Nossa única referência no momento continuava sendo o coveiro. Tivemos a ideia de entrar no cemitério para conversar com o homem, porém, não encontramos nenhuma entrada nos entornos do terreno. Como vamos entrar aí? – perguntei. Marcell adiantou a resposta e com seus quase dois metros de altura apontou a cabeça sobre o muro e por muito pouco não matou de susto aquele senhorzinho do boné desbotado. Perguntamos por um restaurante aberto e o homem nos respondeu. Deixamos o lugar mais uma vez sem saber para onde ir. Ninguém entendeu absolutamente nada do que foi dito. Neste instante avistamos um carro apressado que subia a rua em nossa direção. Conseguimos pará-lo. Coincidentemente, o motorista do carro estava fazendo entregas de marmitas pela região. As refeições eram montadas por dona Eliana, proprietária do único restaurante de Acuruí, chamado Mãos Dadas. O lugar é bem simples, montado com mesas de madeira maciça em um aconchegante corredor de garagem. Éramos os únicos clientes naquela hora, mas a comida estava no fogo e foi servida com fartura de sabor e qualidade.

Eliana guardava sobre o balcão um caderno bem legal com centenas de mensagens deixadas por viajantes da Estrada Real. Enquanto eu fazia minha contribuição histórica naquele livro de recordações, o céu se fechou repentinamente e desabou em águas torrenciais. Por alguns minutos deixei que o tempo me levasse. Ali, sentado num banquinho de madeira, fiquei observando a água escorrer por entre as folhas verdes de uma árvore, enquanto na minha cabeça tentava recriar cenas da vida em Acuruí nos tempos do Brasil antigo.  Pensava que a mesma chuva que na rua lavava as pedras das calçadas, outrora havia de ter aborrecido algum coronel que saiu de casa sem carregar o seu guarda-chuva.

Eram duas horas da tarde quando o tempo finalmente se acalmou. Apesar da forte chuva o chão de terra ainda se mantinha completamente seco e a poeira continuava a brincar de me empanar. A lua logo haveria de aparecer no céu. Como combinado, aos primeiros sinais do entardecer começaríamos a buscar uma área segura para montarmos acampamento. Glaura ficou de fora da meta do dia.

Um mato sem cupim daqui, outra braquearia dali, um casarão colonial assustador com um cavaleiro que corria por seus jardins ignorando os nossos chamados, aos poucos fomos ficando sem opção para pernoitar tranquilamente. Quando a noite bateu seu sino avisando que já estava se colocando em cena, Marcell e eu cruzávamos o distrito de Soares. O primeiro sinal de salvação apareceu. A nossa esquerda, bem em frente ao um bar localizado na única avenida do vilarejo havia um campo de futebol muito bem cuidado e todo cercado por alambrados. Ali era, sem dúvidas, um ponto bom para uma noite de sono tranquilo. No boteco ao lado brotou uma das surpresas mais agradáveis desta viagem. Encontrava-se estacionada próximo a mesa de bilhar – e abarrotada de tralhas –  a bicicleta do cicloviajante, Apgaua, nome que só deixou de ser Gael na minha cabeça três dias após o nosso encontro. Apgaua estava vindo de Vitória no Espiríto Santo e tinha como objetivo pedalar até a região costeira do pacífico. –  “Gael”, você que está vindo de Glaura, dá pra gente chegar lá ainda hoje antes de escurecer? – perguntamos. Apgaua: – Não, e eu consigo chegar a Acuruí?  – Devolvemos a resposta: – Também não. Melhor encontrarmos o responsável por este campo de futebol para ver se a gente consegue montar acampamento nele esta noite. Descobrimos que o vice presidente da associação desportiva de Soares, homem responsável pela conservação do campo e por autorizar a nossa entrada no gramado, era Deguinho, marido de Marlene, a dona do bar onde encontramos Apgaua. Deguinho não estava em Soares, havia saído para prestar um serviço na região e deveria retornar dentro de algumas horas. Três ovos frescos, um macarrão instantâneo e três garrafas de cerveja, esta foi a nossa feira no boteco enquanto aguardávamos o marido de Marlene. As comidas ficaram obviamente para o jantar e a cerveja não deu nem para completar dez minutos de prosa boa. Deguinho retornou a Soares trazendo a ótima notícia de que poderíamos utilizar o vestiário da associação para passar a noite. Banho quente, área coberta e segura, um hotel cinco estrelas aos olhos de quem viaja de maneira simples e distante do luxo. O jantar foi servido com ovos mexidos e macarrão instantâneo, os colchonetes estendidos sobre o chão e o alambrado do campo se transformou em um varal improvisado. Ficamos por alguns minutos sentados a beira do campo aproveitando a brisa fresca da noite para falarmos das histórias que nos fizeram chegar até ali. Durante a madrugada – nocauteado de sono – acordei alegre ao ouvir o barulho da chuva caindo lá fora. Marcell e Apgaua também despertaram ao som de um trovão. – Que maravilha esta chuva, ein pessoal? E veio a resposta: – Puta que pariu, a roupa seca no varal.


ACESSE OS OUTROS CAPÍTULOS DESTA VIAGEM
INTRODUÇÃO / PARTE 1

 


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