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Você já deve ter lido aqui no Aventuraria o Manual dos Bagageiros para Bicicleta – se não leu, clique aqui – e ganhou confiança para escolher um bom bagageiro para a sua expedição. Aliás, talvez não seja somente um bagageiro, mas dois. Você descobriu que, além do bagageiro traseiro, você também irá precisar de um adicional para dianteira da sua bici. Tudo pronto, ou quase. Entramos para a segunda parte desta jornada maluca de tentar encontrar a melhor combinação de equipamentos para fazer uma cicloviagem tranquila. Desta vez vamos tocar num assunto que também deixa muitos ciclistas confusos quando decidem pegar a estrada pela primeira vez. Apresentamos aqui o Manual dos Alforjes para BicicletaDividimos este Manual em 4 tópicos importantes.

1. MATERIAIS
Tecidos e zíperes utilizados na confecção de alforjes.

2. CAPACIDADE VOLUMÉTRICA
Como é calculado o volume de um alforje ou mochila.

3. SISTEMAS DE ENCAIXE
Como os alforjes são fixados nos bagageiros e quais os modelos disponíveis no mercado.

4. 
ESCOLHENDO O ALFORJE CORRETO PARA SUA EXPEDIÇÃO
Algumas dicas para te ajudar a encontrar uma boa combinação de equipamentos para sua cicloviagem.

Pois bem, chega de apresentações e vamos ao que interessa.


1. MATERIAIS

1.1 – TECIDOS

Quando vamos comprar um alforje pela primeira vez é muito possível que tenhamos dúvidas em relação ao tecido usado na sua fabricação. Talvez não seja uma dúvida técnica, pode ser algo mais genérico relacionado a sua capacidade de ser impermeável ou não. As variações de modelos e a quantidade de marcas disponíveis no mercado são bastante, porém os tecidos usados na confecção de alforjes são bem restritos. De forma genérica e ampla podemos dizer que todos os alforjes para bicicleta são construídos a partir de tecidos de nylon ou os chamados vinil (lona). Claro que temos algumas exceções como alforjes feitos em poliéster ou jeans, mas são raros e portanto só vale a pena mencioná-los a propósito de curiosidade. Quando falamos em nylon nós estamos nos referindo a malha base da confecção de todos alforjes, até mesmo os modelos em vinil. Neste grupo incluímos também uma das marcas mais famosas que temos no mundo têxtil, a Cordura®. O que vamos entender um pouco melhor durante a leitura deste manual é que existem semelhanças entre todos estes tecidos, inclusive eles podem ser combinados entre si. Vamos ver então como isso funciona na prática.

1.2 – NYLON

O nylon, segundo o dicionário,  é um  nome genérico para a família das poliamidas. Foi a primeira fibra têxtil sintética produzida pelo homem. Desde então tem sido largamente aplicada na indústria de tecidos, sendo base para a construção dos mais diversos tipos de equipamentos como mochilas, bolsas, malas, vestuário, calçados e até para-quedas. Em alforjes, o nylon comum é facilmente encontrado em produtos provenientes da China, ou em equipamentos produzidos por empresas que buscam reduzir seus custos. Entende-se por nylon comum todas poliamidas simples que não possuem direitos reservados como acontece com o nylon 6.6, que é patente da empresa DuPont e tem seu uso e marca registrada por acordo com outra empresa têxtil chamada Invista. Neste caso o nylon 6.6 e seus tecidos passam a receber o nome de Cordura®. É sobre ele que vamos falar um pouquinho agora.

1.3 – CORDURA®

Selo de Identificação Cordura®

Se você é daquele perfil de aventureiro fuçado que gosta de investigar os detalhes técnicos de um equipamento antes de comprá-lo, provavelmente você já deve ter ouvido falar nos chamados tecidos Cordura®. Este tecido é famoso e não é à toa. Registrado pela empresa DuPont por volta da década de 30, a marca Cordura® inicialmente se referia a um tecido criado a partir de uma seda artificial conhecida por raiom. Anos mais tarde e depois de ter sido utilizada pelo exército americano durante Segunda Guerra Mundial no processo de construção de pneus para seus veículos, a DuPont transferiu a marca Cordura® para os seus tecidos fabricados em nylon. Hoje, com o avanço da tecnologia e com o compartilhamento de seus direitos com a empresa Invista, a marca Cordura® foi transferida novamente, desta vez vinculada ao nylon 6.6. O nylon 6.6 produzido Invista tem altos índices de ligações de hidrogênio, ponto de fusão e taxas de cristalização. Estas propriedades químicas atribuem ao tecido Cordura® características únicas como forte resistência a abrasão, desgaste natural e calor. Hoje os tecidos Cordura® possuem uma variação extensa de modelos com aplicações nos mais diversos setores da indústria, indo de airbag para carros a barracas de acampamento.  Diante das incertezas de procedência dos tecidos feitos em nylon comum e sabendo do envolvimento em pesquisas e tradição histórica da empresa Invista, vale a pena optar por equipamentos que utilizam o Cordura® em suas confecções. Abaixo segue um teste de abrasões feito pelo método Wyzembeek comparando alguns tecidos com o Cordura®.

Teste abrasivo realizado pela fricção cíclica de lixa de papel sobre o tecido. Fonte: blackbeardutygear.com

1.4 – VINIL (LONA)

Processo de Laminação do Tecido Nylon

O vinil – apelido para policloreto de vinila (PVC) –  não é utilizado na confecção de alforjes na forma de fios como acontece com o nylon, portanto, ele entra naquela combinação de materiais que citamos para se formar um novo tecido. Visualmente ele é bem simples de ser identificado por conta da sua espessura e aparência plástica destacante. Os tecidos em lona, como nós conhecemos e podemos encontrar em alforjes de marcas famosas como Saikoski, Thule e Ortlieb, são produzidos a partir da aplicação de camadas de PVC ou PU (Poliuretano) sobre tecidos de nylon (também pode ser aplicado em poliéster ou algodão). Este processo é conhecido por laminação e se resume na aplicação de camadas de PVC ou PU internamente e externamente ao tecido base. A técnica é essencial para a impermeabilização de um tecido. Malhas em nylon ou poliéster em sua forma natural não são capazes impedir que líquidos atravessem suas paredes, mesmo sendo elementos sintéticos. Se olharmos um tecido em nylon bem de perto ou com auxílio de uma lupa vamos ver que ele é formado por milhares de poros. É por esses buraquinhos que a água atravessa a malha. O PVC entra nessa jogada justamente para fechar esses poros. Agora que você sabe que a lona é criada através de um processo de laminação sobre um tecido base, fica claro entender que é possível termos lonas construídas em Cordura®, embora não seja algo de extrema significância neste caso, já que o Cordura® vai ficar escondidinho neste sanduíche de PVC.  Antes de seguir para o próximo capítulo (capacidade volumétrica), ainda precisamos falar sobre aquele detalhezinho que está presente em quase todas as descrições técnicas de mochilas, barracas, bolsas, alforjes e etc; a bendita letrinha “D” que acompanha as informações sobre um tecido.

1.5 – LETRA “D”

Você está olhando as descrições de um alforje ou uma bolsa de guidão quando de repente se depara com a seguinte informação: fabricado em tecido Cordura® 1000D. Que cargas d’água seria esta numeração? E qual é o significado da letra “D” no final?
Esta é fácil, mas podemos complicar, o que definitivamente não iremos fazer. A letra D que acompanha os números em tecidos vem da palavra em inglês denier e não tem nenhuma relação com moeda medieval francesa criada durante o reinado de Carlos Magno. Denier é uma unidade de medida criada pela indústria têxtil que expressa o peso em gramas de um fio, cujo comprimento linear é de 9000 mil metros. Porém, na prática, a única coisa que você precisa saber é que quanto maior for o número que acompanha a letra D mais resistente e pesado será um tecido. Só isso, nada mais. Agora você já pode pegar a sua bici e sair por aí viajando. Só não se esqueça de explicar para os seus amigos o que é também a tecnologia Rip Stop. Não falamos sobre isso? Então vamos lá rapidinho.

1.6 – RIP STOP

Tecido Antirrasgo (Ripstop)

É uma técnica de tecelagem conhecida também por antirrasgo. É bem fácil de identificá-la e pode ser feita ao olho nu mesmo. Sabe aquelas mochilas que você olha e parece que o tecido é formado por milhares de desenhos idênticos em formas de diamantes ou quadradinhos? Então, este seria um tecido antirrasgo. O funcionamento da técnica também é simples. Se você faz um furo dentro de um desses quadradinhos ele não se propagará. Isso acontece porque ele está cercado por costuras geométricas. Se acidentalmente um furo extrapola um destes cercados, inevitavelmente, ele será bloqueado pelo cercado vizinho. Esta é uma técnica bastante eficiente e tem sido aplicada largamente na indústria de bolsas e vestuário. Ufa, agora acabou. Acho que falamos o que tinha que ser dito sobre tecidos. Vamos entender agora um pouco mais sobre a capacidade volumétrica de um alforje, mochila ou qualquer outro tipo de bagagem. Ah, mentira, não acabou ainda não. Faltou darmos uma passadinha ligeira no assunto zíperes YKK®.

1.7 – ZÍPERES YKK®

Zíper YKK®

Você já deve ter ouvido falar sobre este tal de zíper YKK na descrição de algum alforje ou mochila. YKK® é marca registrada do grupo japonês de mesmo nome (YKK), considerado o maior fabricante de zíperes do mundo. A empresa é tradicionalíssima e foi fundada a mais de 70 anos. A qualidade de seus zíperes é expressivamente visível, principalmente, diante das toneladas de zíperes ching-lings que existem por aí. Portanto, se for adquirir um alforje ou mochila dê preferência às marcas que utilizam zíperes YKK® em suas confecções. É um item de custo baixo que faz muita diferença.


2. CAPACIDADE VOLUMÉTRICA

Falando em capacidade volumétrica nós encontramos também uma porção de dúvidas. A primeira e mais comum está relacionada a escolha correta do volume de um alforje para uma expedição. Na sequência vem o questionamento da real capacidade volumétrica atribuída por cada fabricante de alforje. Ambas as dúvidas são bastante pertinentes e merecem uma atenção especial.

2.1 – Como calcular o volume de um alforje?

Este cálculo é bastante simples de se fazer, embora não seja o mais preciso por conta da geometria de um alforje. Utilizando a escala em centímetros como referência, deve-se multiplicar o comprimento de um alforje por sua largura e altura. O resultado será apresentado em centímetros cúbicos (cm³). Para descobrir a litragem final é só dividirmos o número resultante da multiplicação das dimensões do alforje por 1000.

FÓRMULA
Litragem do alforje = (comprimento x largura x altura cm) / 1000

EXEMPLO
Alforje XY
Comprimento:  30cm
Largura: 20cm
Altura: 40cm
Litragem = (30cm x 20cm x 40cm) / 1000 = 24000cm³ / 1000 = 24 litros

2.2 –  Por quê as minhas medidas da dimensão de um alforje não condizem com a fornecida pelo fabricante?

Esta é uma boa pergunta e também simples de responder. Vários são os fatores que podem nos levar a obter medidas diferentes de alforje. A precisão da fita métrica utilizada, os pontos de referência, curvas de canto e preenchimento são alguns dos parâmetros que podem nos dar medidas diferentes para um mesmo equipamento. Os bons fabricantes de alforjes utilizam uma das técnicas que talvez seja a mais eficiente de todas; o enchimento por água. A água, no seu estado líquido, é capaz de preencher todas as áreas internas de um alforje. Feito isso, basta calcular quantos litros foram utilizados no experimento. Esta técnica talvez seja uma das mais utilizadas entre os fabricantes. No Brasil sabemos que as marcas Arara Una e Alpamayo fazem os seus cálculos desta maneira.


3. SISTEMAS DE ENCAIXES

O que você precisa saber sobre os sistemas de fixação é que, praticamente, existem apenas duas maneiras de se encaixar alforjes sobre bagageiros. Fixação por engate rápido ou fixação por sobreposição.

3.1 – Fixação por Engate Rápido

Fixação por Engate Rápido – Thule

Encontrado em uma boa parte dos alforjes existentes no mercado este sistema permite que os alforjes sejam fixados e retirados do bagageiro com muita facilidade e que também sejam utilizados individualmente. Os grandes fabricantes de alforjes no mundo costumam ter seus próprios sistemas de fixação. Praticamente todas as marcas utilizam peças plásticas de alta densidade com exceção da marca brasileira Saikoski, que usa uma combinação ultrarresistente de aço e fitas de nylon.  Sobre a compatibilidade com bagageiros podemos dizer que os sistemas de engate rápido são compatíveis com todos os modelos de bagageiro de marcas conceituadas no mercado. Para os demais bagageiros a dica é ficar de olho no diâmetro externo dos tubos utilizados na sua fabricação. Se os tubos tiverem o diâmetro externo entre 8mm a 10mm, certamente o sistema será compatível. Para tubos com diâmetro muito acima do padrão de 10mm não há muito o que fazer, mas se o diâmetro for, significativamente menor, você tem a opção de criar uma luva ao redor do tubo para aumentar suas dimensões. Há milhões de maneira de se fazer isso e uma delas seria enrolar fitas de borracha (câmara de ar usada) ao redor da estrutura do bagageiro e fazer o acabamento final com fita adesiva do tipo Silver Tape.

VANTAGENS: Fixação rápida no bagageiro e possibilidade de utilizar os alforjes individualmente (útil para uso urbano)
DESVANTAGENS: O plástico está suscetível ao processo de ressecamento ao longo do tempo, o que pode resultar em sua quebra. O processo de substituição dessas peças não costuma ser barato se estiver fora da garantia e pode ser demorado de acordo com a região que você estiver viajando. Poucas possibilidades de adaptação.
* O alforje de 32L da marca Arara Una pode ser utilizado individualmente mesmo não sendo do tipo engate rápido.
** Alforjes feito em Vinil não são transpiráveis, o que pode gerar a condensação de água em seu interior.

3.2 – Fixação por Sobreposição

Fixação por Sobreposição – Alto Estilo

Este é um dos sistemas de fixação de alforjes mais antigos e sua possível origem vem do transporte de carga sobre animais. Foi por muito tempo utilizado no Brasil por tropeiros e ainda hoje é comum encontrar estes alforjes em áreas rurais. O sistema em si, ao ser levado para bicicleta, não sofreu muitas modificações, apenas as bolsas e dimensões foram alteradas para se adequar a nova modalidade. É um sistema confiável, ultrarresistente (principalmente quando feito em tecido Cordura®), prático e de fácil manutenção. O funcionamento é simples; duas bolsas unidas na parte superior por uma fita larga que será acomodada sobre o bagageiro.

VANTAGENS: Resistente em qualquer tipo de terreno; reparos podem ser feitos por você mesmo com o auxilio de uma agulha, linha e tecido; custo reduzido do equipamento por não depender de usinagens ou ter patentes vinculadas.
DESVANTAGENS: Alforjes não podem ser utilizados separadamente (exceção do modelo 32L – Arara Una).


4. ESCOLHENDO O ALFORJE CORRETO PARA SUA EXPEDIÇÃO

Vamos agora descobrir como transformar as informações técnicas apresentadas anteriormente em conteúdo prático. 

4.1 – Alforje impermeável ou não?

Saco Estanque – Sea To Summit

Se o alforje não for impermeável, não se preocupe, existem muitas soluções práticas (profissionais ou improvisadas) para evitar que suas coisas fiquem molhadas em dias de chuva. Um alforje 100% impermeável tem o benefício de já vir pronto para não se molhar, porém isso não significa que um alforje em tecido transpirável seja ineficiente nesse quesito. Uma das soluções para se blindar um alforje e evitar que se molhe por dentro seria a utilização dos chamados sacos estanque . Saco estanque, caso você ainda não tenha ouvido falar, é um saco hermético feito em tecido impermeabilizado ou plástico que não permite a passagem de água para o seu interior. Você tem a opção de adquirir um saco estanque próprio de marcas renomadas como Sea to Summit ou improvisar um, caso seu orçamento esteja bem apertado. NADA DE UTILIZAR SACOS DE LIXO. Uma das melhores opções para se estancar objetos dentro de alforjes é utilizando sacos de ração para cachorro. Sim, é isso mesmo. Sacos de ração são feitos em plástico resistente, diferente do saco de lixo que se rasga com muita facilidade.

Portanto, ser ou não um alforje impermeável não deve ser um fator limitante. O que temos como informação universal é que geralmente alforjes impermeáveis possuem um custo mais elevado. Outra característica comum destes alforjes é que eles não costumam vir com bolsos externos, o que para algumas pessoas é um complemento bastante útil. MUITA ATENÇÃO ao comprar alforjes importados que se dizem ser WATERPROOF, principalmente, objetos vindo da China. À PROVA D’ÁGUA  é muito diferente de ser RESISTENTE A ÁGUA e talvez muitos fabricantes e lojistas se deixam enganar – propositalmente ou não – pelo conceito da palavra inglesa. Lembre-se que, para se obter um alforje 100% impermeável deve-se aplicar um tratamento de PVC ou PU sobre seu tecido e suas costuras necessitam estar seladas (ex. barracas). A Arara Una, um dos maiores fabricantes de alforjes para bicicleta no Brasil, tem um modelo de alforje impermeável feito em Cordura® que segue esta lógica do saco estanque. Além do tecido utilizado na confecção de seus alforjes possuírem um tratamento de PVC para repelir a água, este modelo específico da Arara Una já possui um saco estanque instalado dentro dele. Deste modo a escolha de um alforje deve se resumir a sua capacidade volumétrica, custoapreço estético e acesso a manutenção e garantia.

Uma última observação em relação a impermeabilidade dos alforjes se dá ao uso de capas de chuva. Capas de chuva para alforjes são eficientes para segurar chuvas moderadas e proteger seu equipamento da lama, mas NÃO SÃO CAPAZES de segurar chuvas mais tempestuosas. Não que a água irá transpor a capa, mas ela poderá entrar por áreas não protegidas do alforje como o seu encostado. Use a capa de chuva como complemento a um saco estanque.

4.2 – Qual a necessidade de se utilizar alforjes na dianteira da bicicleta e existe algum modelo próprio para isso?

Alforjes dianteiros são muito bem vindos, principalmente, em cicloviagens de longa duração. É nos alforjes da frente que nós, geralmente, estocamos as comidas, equipamentos de cozinha, temperos, material de limpeza e outras coisinhas úteis do dia a dia. O seu uso se faz necessário quando percebemos que a parte traseira da bicicleta está alcançando o seu limite máximo de peso, tanto em relação aos alforjes quanto ao bagageiro. O excesso de peso na traseira da bicicleta pode ser bem problemático em inúmeros fatores. A começar pelo aumento da força aplicada sobre a roda traseira da bicicleta, que pode aumentar as chances de se furar um pneu como também danificar os raios e até mesmo o aro. Além disso, o excesso de carga sobre um bagageiro pode levar a sua ruptura ou alterar o equilíbrio da bicicleta. Outra coisa é a aderência da roda dianteira. Muito peso atrás pode criar uma tendência de se empinar a bicicleta. Isso é muito ruim para subidas e perigoso em curvas. Então a regra é simples. Está achando que a traseira da sua bicicleta está ficando muito pesada? Opte por instalar um bagageiro e alforje na dianteira.

Em relação aos modelos de alforjes frontais para bicicleta, no geral não existe algo específico. O que se percebe com bastante clareza é que os alforjes de dianteira tem sempre uma capacidade volumétrica menor (algo menor ou próximo a 30 litros), e isso é proposital. Primeiro porque o excesso de peso frontal altera significativamente a dirigibilidade da bicicleta, e outra é que não há a necessidade de tanto espaço assim para uma cicloviagem. Uma regrinha genérica e bastante útil é aquela que define a proporção de cargas distribuídas entre os alforjes traseiros e dianteiros da bicicleta. A média seria colocar 60% do peso total na traseira e 40% na dianteira. Este é um bom começo, os ajustes finos nós vamos fazendo durante a viagem.

4.3 – Qual o tamanho do alforje que devo levar na minha viagem?

Diante de tantas variações disponíveis no mercado encontrar o modelo certo de alforje para sua cicloviagem pode se tornar uma tarefa um pouco estressante. São vários os fatores que devem ser levados em consideração nesta pesquisa e não há ninguém melhor para defini-los do que você mesmo. Inclui-se nesta lista de parâmetros informações como clima, duração de viagem, perfil da expedição (autossustentável ou assistida) e a maneira como você monta suas bagagens de viagem. Para facilitar um pouquinho a nossa vida, elaboramos um pequeno guia ilustrativo para te auxiliar a montar a sua própria configuração de alforjes.

***** Este roteiro foi baseado na montagem de alforjes por pessoas que procuram não transportar muitas coisas em viagens, mas não são radicalmente minimalistas e nem exageradas. Se você for do tipo minimalista, considere a menor das medidas fornecidas na tabela acima. Se for do perfil exagerado, opte pelas maiores medidas.

DICA DE COMPRA

Se você está fazendo uma cicloviagem de curta duração pela primeira vez e tem a intenção de se hospedar em pousadas, comer em restaurantes e ainda não tem certeza se fará outras expedições (difícil não fazer), uma boa opção seria investir em um alforje com capacidade em torno de 30L. Se futuramente você decidir fazer expedições longas e com muita bagagem este alforje pode ser transferido para a dianteira da bicicleta e só então você investe num alforje de capacidade maior para ser utilizado no bagageiro traseiro.

4.4 – Quais são as melhores marcas de alforjes encontradas no Brasil?

O cicloturismo ainda está tomando o seu lugar no Brasil, mas os fabricantes de alforjes e marcas internacionais já estão por aqui faz um bom tempo. O interessante é ver que, embora ainda não tenhamos uma tradição nesta modalidade, o mercado nacional de fabricação de alforjes é bem significativo. Hoje temos por aqui (Julho/2017) ao menos 7 fabricantes  de alforjes para cicloturismo (Alpamayo | Alto Estilo | Arara Una | Aresta | Curtlo | Saikoski | Northpak), sendo a Saikoski pioneira na produção de alforjes impermeáveis no Brasil. Além das marcas nacionais nós temos também outras 4 grandes marcas internacionais (Thule | Ortlieb | Deuter | Topeak). Todas elas, sejam brasileiras ou de origem estrangeira fabricam alforjes de altíssimo nível técnico e durabilidade. Todas as marcas nacionais utilizam Cordura® em seus alforjes e zíperes YKK®.

ALFORJES URBANOS

Neste manual estamos focando nos alforjes próprios para cicloturismo, mas não podemos deixar de citar outros dois grandes fabricantes brasileiros de alforjes do tipo urbano; Alforjaria e Movere.


ATENÇÃO
Tome muito cuidado ao comprar alforjes provenientes da China. Apesar de ter um custo bastante chamativo, a grande maioria dos alforjes fabricados por lá utilizam material de baixa qualidade, incluindo seus tecidos e zíperes. A nossa recomendação é que nunca se compre um alforje da China para fazer uma expedição de longa duração. O problema mais comum encontrado nestes alforjes é o desfiamento de seus tecidos no decorrer da viagem. Alforjes de marcas confiáveis não são caros se considerarmos que são produtos para durar uma vida toda.


Onde posso comprar alforjes e equipamentos para cicloturismo no Brasil?

Um ótimo lugar para se comprar alforjes e equipamentos especializados em cicloturismo é sem dúvidas a loja virtual,  Aventuraria.


julho 19, 2017 18 comentários
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Planejar uma expedição de bicicleta é uma tarefa que pode dar um pouco de trabalho, principalmente, se você é um marinheiro de primeira viagem. As dúvidas costumam serem tantas e surgem tão rapidamente que algumas pessoas acabam sendo levadas pelo medo e passam a acreditar que não são capazes de seguir adiante, o que não é verdade. Viajar de bicicleta não requer que você seja um atleta, que tenha equipamentos de última geração ou que seja um especialista em sobrevivência na selva. Cicloturismo é uma atividade para todos, movida, acima de tudo, pela vontade genuína de querer viajar.

Para quem pretende fazer uma cicloviagem transportando bagagens, deve-se ficar atento a necessidade de se utilizar bagageiros e alforjes na bicicleta. Se sua viagem for simples do tipo que uma troca de roupas e algumas ferramentas básicas sejam suficientes,  talvez uma boa mochila de costas resolva o problema. Porém, se a jornada for longa ou se você estiver carregando muitos equipamentos, aí não há muito o que fazer. Das dúvidas que vão surgindo, talvez a mais frequente e comum esteja relacionada a escolha de um bagageiro.

Esta não é uma tarefa que costuma ser fácil, mas existem alguns conceitos que pode torná-la muito mais simples e agradável. Pensando em ajudar todos aqueles que ainda se encontram perdidos ou que simplesmente buscam dicas para melhorar os equipamentos que já possuem, criamos o Manual dos Bagageiros para Bicicleta, que traz informações relevantes como modelos disponíveis no mercado, compatibilidade com bicicletas, resistência mecânica, durabilidade, improvisação e dicas para tornar seu bagageiro mais seguro e eficiente. Então vamos ao que interessa!


FIXAÇÃO

QUALQUER BAGAGEIRO VAI SERVIR EM QUALQUER BICICLETA?

Ao menos que você seja daquele perfil de pessoas que gostam de criar coisas, a resposta para esta pergunta infelizmente é não. Se a sua ideia é adquirir um bagageiro que seja totalmente compatível com sua bicicleta sem que você precise criar adaptações, é importante que você entenda quais são as características limitantes de cada modelo. A primeira, e talvez a mais importante, seria o seu modo de fixação. Nem todo quadro de bicicleta possui furações apropriadas para bagageiro. Quando encontramos um quadro assim há dois caminhos a se seguir. Optar por um bagageiro chamado universal, que teoricamente é compatível com qualquer modelo de bicicleta ou criar adaptações para tornar o seu quadro compatível com bagageiros específicos.

BAGAGEIROS UNIVERSAIS

São aqueles que teoricamente funcionam em qualquer tipo de bicicleta. Não dependem de furações no quadro e são compatíveis com qualquer tamanho de roda e sistemas de freio. Geralmente são fixados por abraçadeiras no quadro ou no eixo traseiro da roda. Estes bagageiros costumam ter um custo mais elevado. Um exemplo seria o modelo universal Pack n’ Pedal Tour da empresa sueca, Thule, que além de ser compatível com quadros full suspension, pode ser utilizado na dianteiro da bicicleta.

Existem também alguns modelos que poderiam ser classificados de semi-universais. São bagageiros compatíveis com uma escala limitada de tamanhos de roda (geralmente as mais comuns do mercado), mas aceitam todos os tipos de freios. Aqui citamos como exemplo o bagageiro traseiro Raider Universal da empresa francesa, Zéfal, fabricados para bicicletas com rodas de 26″ a 29″.

Ainda dentro da categoria de bagageiros universais podemos incluir os chamados bagageiros de canote de selim. Estes bagageiros como o próprio nome diz são fixados no canote de selim da bicicleta. São mais indicados para uso na cidade ou cicloviagens mais curtas onde não há a necessidade de carregar muita bagagem. Estes bagageiros possuem uma capacidade menor de carga se comparados aos modelos tradicionais. No geral esta capacidade gira em torno 9Kg enquanto os modelos tradicionais suportam em média 20Kg.  Um exemplo de bagageiro de canote de selim seria o Ostand CD28.

A - BAGAGEIRO UNIVERSAL PACK 'N PEDAL THULE ---- B - BAGAGEIRO SEMI-UNIVERSAL RAIDER ZÉFAL ---- C - BAGAGEIRO DE CANOTE DE SELIM OSTAND CD28

A – BAGAGEIRO UNIVERSAL PACK ‘N PEDAL THULE • B – BAGAGEIRO SEMI-UNIVERSAL RAIDER ZÉFAL • C – BAGAGEIRO DE CANOTE DE SELIM OSTAND CD28

BAGAGEIROS ESPECÍFICOS

São bagageiros que por um ou mais parâmetros não podem ser classificados como universais. Por exemplo, um bagageiro que é compatível com diferentes dimensões de rodas (26”, 27.5”, 28”, 700 ou 29”), porém, foi projetado para ser utilizado apenas com um único sistema de freios. Existem também alguns modelos de bagageiros que poderiam ser chamados de ultra-específicos. Foram feitos exclusivamente para um determinado tamanho de roda e tipo de freio.

A - BAGAGEIRO DX1 IMPORTADO / FREIO V-BRAKE ----- B - BAGAGEIRO IMPORTADO / FREIO V-BRAKE ----- C - BAGAGEIRO EM AÇO NACIONAL / FREIO V-BRAKE E RODAS 26"

A – BAGAGEIRO DX1 IMPORTADO / FREIO V-BRAKE • B – BAGAGEIRO IMPORTADO / FREIO V-BRAKE • C – BAGAGEIRO EM AÇO NACIONAL / FREIO V-BRAKE E RODAS 26″

DICA:  Bagageiros feitos para bicicletas com sistema de freio a disco são também compatíveis com freios v-brake, mas não vice-versa. Os bagageiros para bicicletas com freio v-brake só serão compatíveis com freios a disco se o quadro da bicicleta possuir furações que não criem conflitos entre as hastes do bagageiro e a pinça do freio a disco.

Há um padrão de pinças no mercado chamado de flat-mount que teoricamente exclui esta incompatibilidade com bagageiros para v-brake. Porém, o sistema ainda requer quadros específicos (geralmente sem furações para bagageiros) e o preço ainda é um pouco elevado.


POSIÇÃO

Há duas posições diferentes em que um bagageiro pode ser instalado na bicicleta; dianteira e traseira.

BAGAGEIROS DIANTEIROS E TRASEIROS

Os nomes são bastante sugestivos. O bagageiro dianteiro é instalado na parte frontal da bicicleta, geralmente fixado no garfo ou suspensão. Já o bagageiro traseiro segue na parte de trás da bicicleta.

Mas qual seria a necessidade de se ter um bagageiro dianteiro?

Bicicleta com Bagageiros Instalados

Exemplo de bicicleta com bagageiros dianteiro e traseiro

Para quem tem um projeto de realizar uma viagem muita longa ou mesmo curta de maneira autossustentável (acampando e cozinhando a própria comida), o bagageiro dianteiro pode trazer muitos benefícios. A começar pela melhor distribuição de peso na bicicleta. Quando se coloca toda a bagagem de uma viagem sobre o bagageiro traseiro nós estamos aumentando a probabilidade de se ter um pneu furado ou um raio partido. Também, o excesso de peso sobre o bagageiro pode forçar demasiadamente a sua estrutura, o que pode resultar na sua quebra.  Além disso, a combinação de bagageiros traz melhorias significativas para o equilíbrio da bicicleta.

Portanto, deve-se considerar a instalação de um bagageiro dianteiro na bicicleta quando a carga suportada pelo bagageiro traseiro estiver próxima ao limite máximo indicado pelo fabricante.

ATENTOS: Bagageiros dianteiros também seguem a mesma classificação dos bagageiros traseiros em relação a compatibilidade (universais e específicos).


MATERIAL

ALUMÍNIO, AÇO CARBONO, AÇO INOXIDÁVEL, AÇO CROMO-MOLIBDÊNIO (CROMOLY) OU TITÂNIO.

Bagageiro da Tubus Titânio

Bagageiro traseiro da marca Tubus feito em titânio | Preço médio: 300 dólares

Há muitas opções de bagageiros disponíveis no mercado. Com exceção de alguns fabricantes que utilizam peças plásticas de alta resistência na produção de seus equipamentos, a grande maioria dos bagageiros são fabricados puramente em metal. Alguns são bens populares como os produzidos em alumínio e outros mais raros que seria o caso dos bagageiros feitos em titânio. Há muitas discussões sobre o assunto, principalmente, em se tratando da resistência de cada material. Mas será que podemos reduzir a escolha de um bagageiro levando em conta apenas o metal utilizado na sua fabricação? Concordamos que não ou estaríamos excluindo a importância de engenheiros na elaboração de projetos.
Nem sempre o custo de um produto está ligado a sua durabilidade. Um bagageiro feito em titânio, por exemplo, pode custar até 20 vezes mais que um bagageiro similar produzido em alumínio e, ainda assim, apresentar problemas. As condições de soldagem, geometria da estrutura, tratamento térmico dos metais, armazenagem e transporte são parâmetros que influenciam significativamente na qualidade final do produto. No caso do titânio em específico o seu custo elevado pode ser também justificado pelo complexo processo que envolve a extração deste material na natureza.  Já o alumínio é um dos metais mais abundantes que temos na Terra e um dos mais fáceis de ser usinado. Gasta-se menos energia para produzir tubos, cortar, fundir e até mesmo soldar.  Em situação similar podemos citar o aço inoxidável que não tem um custo tão elevado quanto o titânio, porém, há uma diferença expressiva de preço em relação ao alumínio.

Muita gente acredita e afirma que o alumínio é um material fraco e frágil. Isso não é verdade. Vejamos os aviões que são feitos com este metal e suportam cargas intensas e ciclos de trabalhos altíssimos. O que se pode dizer em relação ao alumínio comparado aos outros materiais é que em termos de engenharia o primeiro não possui o chamado limite de resistência à fadiga.  Todo material está sujeito a sofrer danos estruturais quando submetidos a tensões cíclicas por um determinado período de tempo. Porém, teoricamente, alguns materiais tem a capacidade de trabalharem com ciclos infinitos de tensão sem gerar danos as suas estruturas. Claro que esta tensão tem um limite e acima dela o material passa a se comportar como qualquer outro, ou seja, estará sujeito a fadigas.

Fratura em bagageiro feito em aço inoxidável da marca Tubus

Confuso, não? Trazendo para o contexto do artigo seria como se estivéssemos dizendo que um bagageiro de alumínio, inevitavelmente, um dia irá se quebrar.  Já o bagageiro de aço, se o peso colocado sobre ele não for maior que seu limite à fadiga, teoricamente ele nunca se quebrará por excesso de carregamentos cíclicos.  Lembrando que estamos falando de uma situação bem hipotética com bagageiros estruturalmente idênticos e produzidos em condições ideais. Um bagageiro de aço mal projetado pode quebrar numa viagem curta de fim de semana enquanto um bom bagageiro de alumínio pode chegar ao Alasca intacto e ainda estar pronto para rodar mais milhares de quilômetros. O fato do alumínio não ter um limite resistência à fadiga  não quer dizer que ele vai se quebrar durante uma cicloviagem. Geralmente, o número de ciclos que uma estrutura bem projetada em alumínio suporta é tão alto, que talvez você não esteja mais vivo para vê-lo quebrar.

Portanto, mais importante do que se preocupar com o metal utilizado na fabricação de um bagageiro é utilizá-lo de maneira correta. Bagageiros, frequentemente, são quebrados por uso indevido. Há uma série erros que podem reduzir substancialmente a vida útil deste equipamento. Os mais comuns podemos dizer que seriam:

    • Bagagens com peso acima do limite recomendado pelo fabricante;
    • Má distribuição de peso dentro e fora dos alforjes;
    • Parafusos mal instalados (frouxos ou apertados demais);
  • Inclinação incorreta dos bagageiros (“empinado” ou com o “bico” caído)

Bons bagageiros quando bem instalados e respeitados as recomendações dos fabricantes duram uma vida toda. A seguir montamos um esquema para ajudá-lo a encontrar o bagageiro certo para sua bicicleta e seu tipo de expedição.

Escolha de Bagageiros - Esquema


DICAS E CUIDADOS PARA EVITAR QUE SEU BAGAGEIRO SE QUEBRE

1) DISTRIBUIÇÃO CORRETA DE PESO

Brinquedo Boneco João BoboDistribuir corretamente o peso da bagagem traz uma série de benefícios não só para a estrutura do bagageiro, mas também para o equilíbrio da bicicleta. Isso acontece porque ao concentramos o peso das bagagens próximo ao chão estamos rebaixando também o seu centro de gravidade. Quanto mais baixo ele estiver, mais fácil será para pilotar a bicicleta. Um exemplo bem legal para se entender esta relação física seria o famoso boneco que popularmente conhecemos por João Bobo. Por mais que a gente tente derrubá-lo, o boneco sempre retorna a sua posição ereta. Se olharmos com mais atenção a estrutura deste brinquedo vamos perceber que o seu peso está praticamente todo concentrado na base.
No caso de preservar a estrutura do bagageiro, quando se concentra o peso da bagagem próximo ao eixo da roda, ou seja, colocando o que é mais pesado no fundo do alforje, estamos reduzindo a amplitude de seu deslocamento lateral. Funciona assim. Nós não percebemos, mas quando estamos pedalando com cargas em cima do bagageiro, o tempo todo ele está se movimentando para um lado e para o outro.  Quando o peso se concentra na parte superior, a amplitude do movimento deste bagageiro é muito maior. Isso aumenta também o estresse em sua estrutura ampliando a probabilidade dele vir a se quebrar. Além disso, quando concentramos a bagagem mais pesada no fundo do alforje estamos também aproveitando a estrutura do quadro da bicicleta para impedir que a força gerada lateralmente pelos alforjes se aplique somente no bagageiro. Outra dica importante é distribuir igualitariamente o peso das bagagens entre o lado direito e o esquerdo dos alforjes.

Abaixo segue algumas simulações comparando a distribuição de peso dentro dos alforjes e sua relação com a movimentação da estrutura do bagageiro.

Influencia Alforje X Bagageiro

2) PARAFUSOS, ARRUELAS DE PRESSÃO E PORCAS AUTOTRAVANTES

É comum pensarmos que um parafuso está seguro quando ele esta muito bem apertado. Isso pode ser uma boa armadilha. Parafusos apertadíssimos podem ser tão problemáticos quanto parafusos frouxos. Todo parafuso tem sua tabela de torque que indica a força máxima e ideal que deve ser aplicada na peça durante seu parafusamento. Existe uma ferramenta chamada torquímetro que nos mostra exatamente qual é a força que estamos aplicando em um parafuso. Porém, o torquímetro é uma ferramenta profissional de custo bastante elevado. O melhor que temos a fazer nesta situação é usar o bom senso. Não muito apertado e nem frouxo demais.

ARRUELAS DE PRESSÃO

Arruela de PressãoQuando estamos parafusando algo que não requer uma porca na outra extremidade o uso de uma arruela de pressão pode ser muito útil. Este tipo de arruela cumpre o papel de não deixar que um parafuso se afrouxe.  Todo parafuso depois de um certo tempo de uso acaba perdendo um pouco da sua pressão.  Isso geralmente acontece porque a superfície na qual ele está em contato acaba se deformando. Embora seja algo milimétrico, esta deformação é capaz de gerar uma pequena lacuna entre a cabeça do parafuso e a parede da estrutura em que ele se encontra parafusado. Esta lacuna é suficiente para deixar o parafuso “bambo”.  A arruela de pressão entra para cumprir a função de criar um elo moldável dentro deste espaço vazio.

PORCAS AUTOTRAVANTES

Porca AutotravanteOutra pecinha muito útil para parafusos que utilizam porcas na extremidade são as porcas autotravantes que fazem exatamente o que seu nome sugere, ou seja, trava a porca evitando que ela se afrouxe. É uma porca comum como outras que se diferencia por ter dentro de sua estrutura um anel de nylon. Quando o parafuso passa por este anel surge uma nova rosca. Esta rosca tem a função de criar um descompasso com a rosca original da porca. Assim surge o travamento. Vale a pena gastar alguns centavos a mais por esta porca. Hoje em dia é super fácil encontrá-la em casas de ferragens, mas se por acaso você não tiver acesso a uma porca autotravante, você pode criar uma trava no parafuso simplesmente adicionando uma outra porca comum sobre a porca já instalada.

PARAFUSO INOX OU AÇO CARBONO

Parafusos Allen InoxTanto faz. Se a sua preocupação em relação ao parafuso estiver relacionado a sua dureza, então fique com aquele parafuso pretinho feito em aço carbono que tem impresso na sua cabeça o número 12.9. Este número é a classe de resistência do material. Vulgarmente podemos dizer que quanto menor for este número, mais maleável será o parafuso.  Os parafusos em aço carbono com a classe 12.9 são comuns e possivelmente é o que você irá encontrar em no mercado. Agora, se a sua preocupação está relacionada ao enferrujamento da peça, então o parafuso inoxidável pode ser uma ótima opção. Parafusos em bagageiros não quebram naturalmente com facilidade. Lembra da explicação sobre limite à fadiga dos materiais? Pois bem, se você apertar demais um parafuso ele pode se quebrar precocemente. Se deixá-lo frouxo ele pode fazer o papel de uma alavanca e a força do bagageiro aplicada sobre ele acaba rompendo sua estrutura.

3) BAGAGEIRO DIANTEIRO

Respeite sempre o limite de carga máxima suportada por cada bagageiro. Muita gente atropela esta informação e acaba tendo uma dor de cabeça tremenda quando se vê parado no meio de uma viagem porque o bagageiro quebrou. Se você perceber que a sua bagagem está próxima ao limite máximo de carga suportado pelo bagageiro traseiro, providencie a instalação de um bagageiro na dianteira de sua bicicleta. Um projeto de cicloviagem planejado por meses não merece se transformar em um pesadelo por um descuido previsível.

Bagageiros Dianteiros

Alguns modelos de bagageiros dianteiros disponíveis no mercado.

4) EVITE BURACOS

Esta é uma dica bastante óbvia e simples. Sempre que possível evite passar sobre buracos ou terrenos muito acidentados. Uma bicicleta trepidando é ruim para todo mundo.

5) MANUTENÇÃO PREVENTIVA

Sempre que rodar algumas centenas de quilômetros verifique se os parafusos e a estrutura do bagageiro estejam corretos. Algumas vezes nós acostumamos tanto com a viagem que parece que nada mais pode dar errado ou se quebrar. Só o pneu, este sim é uma assombração constante com seus furos.

6) INCLINAÇÃO DO BAGAGEIRO     

Tente instalar o seu bagageiro de maneira que a sua armação superior fique paralela ao chão. Nada de bagageiros “empinados” ou com o “bico caído”.


ADAPTAÇÕES E IMPROVISAÇÕES

De repente você quer colocar um bagageiro com um preço mais em conta na sua bicicleta e descobre que ela não tem nenhuma furação apropriada pra isso. E agora, o que fazer? Há soluções, algumas simples e outras que podem ser tão complexas que acaba valendo a pena investir em um bagageiro universal. Vamos ao primeiro e mais comum de todos os casos.

QUADRO SOMENTE COM FURAÇÃO PARA BAGAGEIRO PRÓXIMO AO EIXO TRASEIRO DA RODA 

Este é um caso  bem simples de se resolver. Na verdade, as possibilidades são quase infinitas. Vamos as duas mais comuns.

ADAPTADORES PRONTOS


Abraçadeira de Selim com FuraçãoAbraçadeira de Selim com FuraçãoForam feitos exclusivamente para resolver este problema. O mais comum e universal é a utilização de abraçadeiras de selim com furação para bagageiro. No Brasil nós temos no mercado o modelo MC-76 da marca Tranz-X. Esta abraçadeira substitui a original de sua bicicleta. Por ser parafusada e não presa por blocagem de pressão ela acaba inibindo um pouco o roubo de selins.

ABRAÇADEIRAS EMBORRACHADAS TIPO P

Abraçadeira tipo PAbraçadeira tipo PCumprem muito bem o papel de adaptação. Não são muito comuns de se encontrar, mas podem ser confeccionadas utilizando abraçadeiras comuns de encanamento e um pedaço de borracha como câmara de ar ou pneu descartado. A função da borracha é impedir que a abraçadeira se deslize além de proteger a pintura do quadro.

QUADRO SOMENTE COM FURAÇÃO PARA BAGAGEIRO PRÓXIMO AO CANOTE DE SELIM

Adaptador Furação TraseiraAdaptador Bagageiro TraseiroA melhor saída seria optar por um bagageiro que se encaixa na bicicleta através da blocagem traseira da roda. Para fixar as hastes superiores você poderia utilizar uma das opções mencionadas no item anterior.  Existe um adaptador no mercado internacional capaz de permitir que as hastes inferiores de um bagageiro traseiro sejam instaladas em um quadro sem furação. Apesar de ser uma ótima solução, este adaptador é caro e não é compatível com qualquer modelo de bagageiro. Seria necessário criar uma outra adaptação sobre ele, o que pode acabar transformando uma solução em dor de cabeça.


CONSIDERAÇÕES

Em algum canto, em algum lugar há um bagageiro apropriado para sua bicicleta. A única coisa que você precisa fazer é identificá-lo. Quando não há uma opção pronta de imediato, criar adaptações pode ser uma saída bem prática e rápida. Ao instalar um bagageiro em sua bicicleta esteja atento as recomendações dos fabricantes e as dicas que fornecemos neste manual. Se for levar muita bagagem, não abra mão de um bagageiro dianteiro. Se tudo estiver muito bem colocado e sem exageros, você terá uma coisa a menos para se preocupar na viagem. Então, decidido o bagageiro, vamos aos alforjes, mas isso é assunto para o próximo manual.


*  Este artigo foi elaborado com a colaboração do amigo Gustavo Miranda, engenheiro mecânico na indústria aeronáutica.


ONDE COMPRAR BAGAGEIROS
f19205ca2b.nxcli.net
novembro 29, 2016 29 comentários
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O pássaro e a roda

Anos atrás durante uma viagem de bicicleta que fiz do interior de Minas à capital do nosso vizinho Uruguai, fui agraciado por um ato quase milagroso de ressurreição. Sim, parece exagero, mas o simbolismo é o que faz o conto ganhar seu charme.

Era um dia comum como qualquer outro de céu cinzento e fechado. Havia acabado de deixar a casa de Nelson na ilha de Florianópolis onde passei duas noites agradáveis na presença do amigo e sua esposa.  Boa prosa, comida caseira e muita conversa fiada. Naquele dia eu deveria alcançar a cidade de Laguna, cento e poucos quilômetros a minha frente.

Meu caminho por aquelas bandas de Santa Catarina era feito todo pelo acostamento da BR 101, rodovia que oficialmente se inicia lá em Touros no nordeste e termina em São José do Norte,  Rio Grande do Sul. O trecho em que eu transitava, por muitos anos ficou marcado pelo alto número de acidentes com vítimas fatais.  No passado a BR 101 era uma rota com tráfego muito intenso de caminhões por vias que ainda não eram duplicadas. Hoje em dia a coisa melhorou bastante, mas ainda assim a sua fama atormenta muito motorista que passa por ali.

Depois do almoço, que aconteceu em um posto de gasolina no meio do caminho, e vale aqui citar o seu nome pelo atendimento impecável, comida saborosa, limpa e com preço justo; Restaurante Morro dos Cavalos;  segui viagem em ritmo preguiçoso curtindo vagarosamente as memórias de uma refeição estupenda que acabara de deixar para trás. Mais tarde, algumas dezenas de centenas de quilômetros a frente eu viria a descobrir que aquela tinha sido a última grande refeição da viagem, todas as outras após foram boas, porém nada demais.

Eu pedalava com tanta preguiça que mal era capaz de manter a bicicleta em pé. Observava a vegetação, os carros apressados e os caminhoneiros que pela vida corrida de entregas, talvez, só voltariam a ver suas esposas e filhos meses depois quando eu já estaria de volta no conforto de meu sofá lá em minas, lendo um livro repetido ou simplesmente gastando o meu tempo lembrando-me das histórias desta viagem como estou a fazer agora. De repente, ao olhar para a estrada marginal notei que um casal muito mimoso de pássaros havia acabado de pousar bem no meio da pista. Por um segundo achei arriscado demais a manobra de pouso daqueles passarinhos e foi necessário mais um segundo para eu ter certeza de que eu estava certo. Um carro aproximou em alta velocidade e acertou em cheio uma das aves. Eu virei a cabeça, parcialmente com os olhos semiabertos daquele tipo que acredita na salvação, mas não quer enfrentar a morte e fiquei torcendo para que as rodas de trás não esmagassem o bichinho no chão. Peço permissão as autoridades religiosas do mundo, mas naquele momento eu me vi acima de qualquer Moisés fazendo algo bem mais grandioso do que simplesmente abrir um mar com o movimento das mãos. E num passe sobrenatural de alguém que achou ter poderes da mente, acredite quem quiser e é bem provável que ninguém deva acreditar, consegui  fazer com que o pássaro se esquivasse das rodas do carro por miseráveis milímetros, escala tão pequena que não caberia em uma régua escolar. Talvez fosse possível aferir a distância entre o pássaro e o pneu com o auxílio de um paquímetro, mas isso não mudaria em nada a história.

Entrava em cena um pseudo médico ciclista, que de entendimento acadêmico na área da saúde, só tinha a aprovação ética em querer ver o paciente bem. Apressado, joguei a bicicleta no canteiro do acostamento e corri para a pista antes que outro carro aparecesse para acabar de vez com o meu momento de canonização. O pássaro estava molengo, sem reação e de olhos fechados. Peguei a pouca água que ainda me restava na bagagem e joguei sobre sua cabeça. Com o dedão da mão esquerda apertava o seu tórax e com a boca eu tentava, pateticamente, iniciar uma respiração boca-a-bico com o passarinho. Uma assoprada daqui, outra apertada dali, um cachoalhão, uma gota de água no bico, um pouco de massagem cardíaca e mais uma inflada em seus pulmões. Acho que devo ter ficado uns dez minutos neste processo cíclico antes de me explodir de alegria ao ver os olhos do passarinho se abrirem. A platéia inexistente na sua forma humana, melhor assim pois foi um humano que quase havia tirado a vida do bichinho, logo foi ao delírio. As plantas dançavam com os ventos, as árvores cuspiam suas folhas como confetes de carnaval, as formigas saiam em procissão e o cachorro, que de longe observava a refeição fácil que eu segurava nas mãos, logo abaixou o rabo e fugiu de fininho. Ninguém era capaz de enfrentar a força da natureza que eu sentia dentro de mim.

O pássaro não quis aceitar as recomendações médicas de se manter em repouso por algumas horas e logo levantou voo novamente, ainda um pouco embriagado pelo susto. O resto da viagem foi preenchido por um sentimento profundo de gratidão e a sensação de que nada ruim poderia me acontecer. E de fato, não aconteceu.

 

 

 

novembro 8, 2016 2 comentários
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O CÃO E O COVEIRO
A tentativa de chegar em Glaura

O dia amanhecera bonito na região de Rio Cima. Acordar e saber que Acuruí, cidade onde faríamos a nossa parada para almoço, não estava distante, nos deixou um pouco preguiçosos no café da manhã. Marcell carregava em seus alforjes algumas ervas que ele havia comprado no mercado municipal de Belo Horizonte antes da viagem. As informações eram de que as folhas deveriam ser consumidas em forma de chá e sua atuação no organismo era de caráter anti-inflamatório e analgésico. Nós costumávamos tomar o chá todos os dias pela manhã e a noite depois do jantar. Apesar de ser muito crente em relação ao uso de plantas em medicina preventiva e alternativa, eu não estava levando muito a sério que aquela coleção de plantas desidratadas, que continha até folhas de camomila, poderia ter efeito em uma viagem relativamente curta como a nossa. Se o efeito era certo eu não poderia dizer, porém a única vez que senti dores nas pernas durante a viagem foi exatamente dois dias após eu ter abandonados os chás. Estava subindo os últimos quilômetros da Serra do Mar quando fui pego por fisgadas dolorosas na musculatura frontal da coxa esquerda.

O sol dava seus primeiros sinais de castigo. Daqui para frente vou poupar o leitor de ficar se cansando com os relatos de exaustão em morros intermináveis e sol escaldante, pois, teoricamente, todo brasileiro sabe como é o relevo em Minas Gerais.

Era quase uma hora da tarde quando chegamos ao trevo de Acuruí. A cidade que pertence a rota oficial da Estrada Real está localizada em uma das regiões mais aquíferas dos entornos da capital mineira e tem como vizinhos importantes as serras da Gandarela, Caraça, Capanema e um pouco mais distante a serra do Cipó. A cidade fica no pé de um vale a beira da represa Rio das Pedras, que na tradução para tupi-guarani forma o nome da cidade. Acuruí ainda preserva sua arquitetura peculiar da época em que era uma vila estratégica para tropeiros e mineradores de ouro. Depois que o ouro na região se esgotou muitas famílias abandonaram o lugar deixando para trás somente as pessoas mais idosas ou com crianças muito pequenas em casa. Assim a cidade se conservou tendo pouco crescimento desde então.

Entramos em Acuruí com calma procurando por alguém nas ruas que pudesse nos dar uma indicação de algum lugar para comer, porém quanto mais adentrávamos na cidade menos esperançoso eu ficava de encontrar um restaurante aberto aquela hora. As ruas estavam vazias e pouquíssimas casas tinham suas janelas abertas, apesar do forte calor.

Pedalando sem rumo pela cidade acabei avistando, algumas dezenas de metros à frente, um senhor trabalhando naquele que deveria ser o pouco habitado cemitério da cidade. Homem magro de pele enrugada e marcada pelo sol, vestindo uma camisa de algodão molhada por suor e um boné que mal dava para definir a cor. Naquele terreno com enxada em mãos, retirava os matinhos que cresciam ao redor dos túmulos enquanto aguardava, pacientemente, a chegada de um novo e eterno hóspede. A sua frente, do outro lado do muro, encontrava-se a igreja de Nossa Senhora do Rosário, construída no século dezoito para celebrar missas para os negros e escravos.

Nos jardins desta igreja acabei me surpreendendo ao encontrar uma das maiores matilhas que já havia visto na vida. A cada cão que latia com a nossa presença, outros dois se revelavam no meio do mato. Surgiam cães em proporções exponenciais. Se não fosse pelo encontro prévio que tivemos com o coveiro, e até então não havíamos encontrado ninguém pelas ruas, eu desconfiaria que Acuruí era governada por aqueles bichinhos enfurecidos.

Nossa única referência no momento continuava sendo o coveiro. Tivemos a ideia de entrar no cemitério para conversar com o homem, porém, não encontramos nenhuma entrada nos entornos do terreno. Como vamos entrar aí? – perguntei. Marcell adiantou a resposta e com seus quase dois metros de altura apontou a cabeça sobre o muro e por muito pouco não matou de susto aquele senhorzinho do boné desbotado. Perguntamos por um restaurante aberto e o homem nos respondeu. Deixamos o lugar mais uma vez sem saber para onde ir. Ninguém entendeu absolutamente nada do que foi dito. Neste instante avistamos um carro apressado que subia a rua em nossa direção. Conseguimos pará-lo. Coincidentemente, o motorista do carro estava fazendo entregas de marmitas pela região. As refeições eram montadas por dona Eliana, proprietária do único restaurante de Acuruí, chamado Mãos Dadas. O lugar é bem simples, montado com mesas de madeira maciça em um aconchegante corredor de garagem. Éramos os únicos clientes naquela hora, mas a comida estava no fogo e foi servida com fartura de sabor e qualidade.

Eliana guardava sobre o balcão um caderno bem legal com centenas de mensagens deixadas por viajantes da Estrada Real. Enquanto eu fazia minha contribuição histórica naquele livro de recordações, o céu se fechou repentinamente e desabou em águas torrenciais. Por alguns minutos deixei que o tempo me levasse. Ali, sentado num banquinho de madeira, fiquei observando a água escorrer por entre as folhas verdes de uma árvore, enquanto na minha cabeça tentava recriar cenas da vida em Acuruí nos tempos do Brasil antigo.  Pensava que a mesma chuva que na rua lavava as pedras das calçadas, outrora havia de ter aborrecido algum coronel que saiu de casa sem carregar o seu guarda-chuva.

Eram duas horas da tarde quando o tempo finalmente se acalmou. Apesar da forte chuva o chão de terra ainda se mantinha completamente seco e a poeira continuava a brincar de me empanar. A lua logo haveria de aparecer no céu. Como combinado, aos primeiros sinais do entardecer começaríamos a buscar uma área segura para montarmos acampamento. Glaura ficou de fora da meta do dia.

Um mato sem cupim daqui, outra braquearia dali, um casarão colonial assustador com um cavaleiro que corria por seus jardins ignorando os nossos chamados, aos poucos fomos ficando sem opção para pernoitar tranquilamente. Quando a noite bateu seu sino avisando que já estava se colocando em cena, Marcell e eu cruzávamos o distrito de Soares. O primeiro sinal de salvação apareceu. A nossa esquerda, bem em frente ao um bar localizado na única avenida do vilarejo havia um campo de futebol muito bem cuidado e todo cercado por alambrados. Ali era, sem dúvidas, um ponto bom para uma noite de sono tranquilo. No boteco ao lado brotou uma das surpresas mais agradáveis desta viagem. Encontrava-se estacionada próximo a mesa de bilhar – e abarrotada de tralhas –  a bicicleta do cicloviajante, Apgaua, nome que só deixou de ser Gael na minha cabeça três dias após o nosso encontro. Apgaua estava vindo de Vitória no Espiríto Santo e tinha como objetivo pedalar até a região costeira do pacífico. –  “Gael”, você que está vindo de Glaura, dá pra gente chegar lá ainda hoje antes de escurecer? – perguntamos. Apgaua: – Não, e eu consigo chegar a Acuruí?  – Devolvemos a resposta: – Também não. Melhor encontrarmos o responsável por este campo de futebol para ver se a gente consegue montar acampamento nele esta noite. Descobrimos que o vice presidente da associação desportiva de Soares, homem responsável pela conservação do campo e por autorizar a nossa entrada no gramado, era Deguinho, marido de Marlene, a dona do bar onde encontramos Apgaua. Deguinho não estava em Soares, havia saído para prestar um serviço na região e deveria retornar dentro de algumas horas. Três ovos frescos, um macarrão instantâneo e três garrafas de cerveja, esta foi a nossa feira no boteco enquanto aguardávamos o marido de Marlene. As comidas ficaram obviamente para o jantar e a cerveja não deu nem para completar dez minutos de prosa boa. Deguinho retornou a Soares trazendo a ótima notícia de que poderíamos utilizar o vestiário da associação para passar a noite. Banho quente, área coberta e segura, um hotel cinco estrelas aos olhos de quem viaja de maneira simples e distante do luxo. O jantar foi servido com ovos mexidos e macarrão instantâneo, os colchonetes estendidos sobre o chão e o alambrado do campo se transformou em um varal improvisado. Ficamos por alguns minutos sentados a beira do campo aproveitando a brisa fresca da noite para falarmos das histórias que nos fizeram chegar até ali. Durante a madrugada – nocauteado de sono – acordei alegre ao ouvir o barulho da chuva caindo lá fora. Marcell e Apgaua também despertaram ao som de um trovão. – Que maravilha esta chuva, ein pessoal? E veio a resposta: – Puta que pariu, a roupa seca no varal.


ACESSE OS OUTROS CAPÍTULOS DESTA VIAGEM
INTRODUÇÃO / PARTE 1

 


outubro 19, 2016 0 comentário
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Viajar de bicicleta é uma experiência tremendamente fantástica capaz de marcar uma vida por toda ela. É diferente e não dá para dizer que seja a mesma coisa ou algo parecido a uma viagem de moto, carro ou avião. Entenda que não estou dizendo que viajar de bicicleta seja a melhor forma de sair por aí, pois, emoção é um sentimento muito pessoal.

Fazer uma cicloviagem tem suas particularidades e são elas que fazem a coisa ficar mágica. Com a bicicleta você vai mais devagar que um carro ou moto, porém, transita um pouco mais veloz se estivesse caminhando. É este meio termo que nos permite agregar um pouco do que cada jeitinho de viajar tem de melhor, transformando a experiência de uma cicloviagem em algo encantador. Você pode se deslocar de cidade a outra no mesmo dia, sentir o vento no rosto, escutar o cantar dos pássaros, encontrar cachoeiras escondidas pelo som de suas quedas d’água na mata, parar em qualquer lugar, fazer novas amizades, aprender novos costumes e ao final de tarde ainda se deliciar com a prazerosa sensação de ter vencido, com seu próprio esforço, estradas sob as mais diversas condições de clima e relevo.

O cicloturismo é democrático, não há separação entre ricos e pobres. Qualquer um pode viajar de bicicleta, desde que tenha uma em mãos. E não precisa ser nenhuma bicicleta de outro mundo, basta ter duas rodas, pedal e um par de freios, para brecar a sua vontade incessante de sair voando por aí.

Eu quando comecei a viajar de bicicleta –  e não faz tanto tempo assim – nem sabia que existia um nome próprio para isso. Fui saber o que era cicloturismo muito tempo depois quando já tinha acumulado um pouco mais de experiência. A minha primeira viagem, que aconteceu na companhia de um amigo, foi uma verdadeira catástrofe. Um aula dramática de tudo o que não se deve fazer em uma cicloviagem. Sem dinheiro, dias contadíssimos, preparação física nula, alimentação porca, ausência de equipamentos, adaptações inseguras, bicicleta mal ajustada dentre outras coisas que fizeram desta viagem uma ótima escola. O aprendizado foi tão intenso e marcante que eu me senti no céu quando saí para viajar pela segunda vez.

Eu me lembro muito bem como foi que caí, oficialmente, neste mundo das viagens de bicicleta. Nasci e fui criado em um pequena cidade do sul de Minas Gerais chamada Alfenas. A cidade banhada pelo lago de Furnas é mais uma destas do interior em que a religiosidade da população é bastante visível. Cresci ouvindo histórias de peregrinos que viajavam a pé, à cavalo ou de bicicleta até a cidade de Aparecida no estado de São Paulo, lugar onde está instalado a segunda maior basílica do mundo depois das edificações de São Pedro, no Vaticano. Esta convivência com pessoas que viajavam de bicicleta acabou me deixando habituado com ideia. Anos mais tarde lá estava eu fazendo também o caminho sul mineiro da fé.

Mas como eu já disse, a minha primeira viagem oficial de bicicleta foi um fracasso que deu certo. O sucesso só aconteceu porque a vontade de chegar ao destino ainda era maior do que a desistir.

Da primeira viagem eu aprendi boa parte do pouco que hoje sei sobre cicloviagens e que na época não tinha muito a quem perguntar. Tinha muitas dúvidas e não sabia por onde começar. Por fim peguei algumas informações superficiais sobre rotas e um bocado sobre alimentação e fiquei por aí.

Durante a viagem ao descer a serra da Mantiqueira quase tivemos um acidente grave quando o bagageiro traseiro da bicicleta do amigo Paulo não suportou a adaptação que ele fez e caiu sobre a roda. Só fui saber o que aconteceu minutos depois do incidente quando eu, visivelmente preocupado, o vi surgir no final da ultima curva da montanha. O bagageiro cedeu enquanto ele passava por um túnel e só foi possível continuar viagem porque ele usou o cadarço de seu tênis para improvisar um novo apoio de bagageiro. Claramente aquela não era a melhor das soluções, mas a engenhosidade arcaica da ideia permitiu que chegássemos aonde queríamos.

As perguntas que atormentavam há quase 10 anos, vejo que hoje ainda continuam sendo as mesmas entre aqueles que estão iniciando no mundo das cicloviagens.  Em geral as dúvidas estão divididas em categorias e suas ramificações. No setor de bicicletas temos as dúvidas referentes a bagageiros, alforjes, acessórios, freios, pneus, tamanhos de quadro, selim e suspensão. Na área de logística e transporte repousam questionamentos como perigos nas estradas, medidas de segurança, o que levar na bagagem, peso, sinalização e etcétera. Em alimentação temos assuntos como fogareiros, comidas práticas, vitaminas e hidratação. Temos também as dúvidas frequentes sobre hospedagem como onde ficar, acampamento, viajar em grupo ou sozinho, higiene pessoal e assim vai. As dúvidas não acabam e as respostas são infinitas.

Após alguns anos quebrando a cabeça a aprendendo um pouco mais a cada dia o ofício de ser um aventureiro, criei manias e modelos de como fazer uma cicloviagem de maneira confortável, segura, prazerosa e econômica. Certamente o leitor haverá encontrar por aí outras tantas opiniões, e algumas até divergentes, baseadas nas experiências de estrada de outros colegas e amigos. Que seja assim, sempre. Algo só pode ser integral quando há a união das partes. Talvez você se veja confortável ao tomar os meus relatos como modelo para suas aventuras; talvez poucas coisas do que falei vão lhe ser úteis; talvez a utilidade deste texto seja apenas para você ter a certeza de que não é por estes caminhos que você traçará os seus.

Assim pretendo compartilhar minhas vivências e aprendizados neste mundo das viagens de bicicleta, dando início a uma coleção de artigos batizados com o título: O Que a Estrada me Ensinou.

Este é o capítulo de introdução.
Bons ventos e ótimas aventuras.

outubro 17, 2016 2 comentários
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Formado à aproximadamente dois anos, estava morando em São Paulo, dividindo apartamento com um grande amigo meu, trabalhando em uma clínica no Brás e vivendo aquela rotina que todo paulistano, ou quem mora na cidade de São Paulo, conhece: a que faz você se sentir peça de uma engrenagem e que será facilmente substituído ao “apresentar defeito”.  Soma-se a isso um namoro à distância indo aos trancos e barrancos, que para continuar existindo, dependeria de uma mudança minha. Mudança essa de comportamento e de residência. No caso, mudar-me de São Paulo para Vitória, capital do Espírito Santo.

Essa é a situação a qual me encontrava em Dezembro de 2014, data em que resolvi que ia deixar a capital paulista para viver na Ilha Capixaba.

Conversei com André, amigo com o qual eu dividia o aluguel do apartamento e resolvemos que não haveria maiores problemas em minha saída. O emprego no Brás eu já havia deixado meses atrás e estava prestando serviço em uma clínica em Mogi Das Cruzes. Iria continuar em São Paulo até as festas de fim de ano e depois sair definitivamente da selva de pedras. Porém, em certa segunda-feira ainda no início do mês de Dezembro fui para Mogi trabalhar e recebi a notícia de que havia sido “transferido” para outra clínica, essa em Ferraz de Vasconcelos. Era uma clínica menor e que me renderia menos. Achei que era melhor adiantar meus planos de deixar de vez São Paulo.

Naquela semana fiquei adiantando algumas coisas em casa, fazendo contas e planejando o futuro breve. Rayana, minha namorada, viria para seu curso e no fim de semana iríamos para Sorocaba, onde o irmão dela iria noivar-se. Minha mãe também estaria em São Paulo naquela semana e ia conosco à Sorocaba.

Na festa do noivado, conversando com minha mãe e Rayana, decidi que iria embora de São Paulo na próxima semana. Iria na terça-feira e de bicicleta. Assim, de bate pronto. Eu não possuía equipamentos para uma cicloviagem, porém tinha uma vontade enorme dentro de mim. Já havia feito uma aventura dessas percorrendo o caminho entre Alfenas/MG e Aparecida/SP em 2009, e desde então, sempre novas cicloviagens não saíram do papel. Dessa vez não poderia escapar. Havia saído do emprego, planejado me mudar de cidade, nada poderia me impedir.

De volta a São Paulo, ainda no Domingo, comecei a organizar as coisas para a viagem. Minha bicicleta era simples, mas com certeza agüentaria todo o trajeto com segurança. O grande problema era que não estava equipada com bagageiro. Esse detalhe posteriormente se mostraria fundamental para o desenvolvimento de uma viagem agradável. Mas em São Paulo, com apenas a segunda-feira para planejar e sem chance de desistir ou de postergar a viagem, levar apenas uma mochila com peças de roupas, água e alguns petiscos, parecia-me uma ideia fantástica. Tracei a rota, marquei as paradas onde iria pernoitar, coloquei todo o conteúdo da mochila para testar o peso e simulei também uma troca da câmara de ar, caso o pneu furasse. Este teste era fundamental, pois nunca havia removido um pneu. A vida toda andando de bicicleta e nunca havia tido problema com furos. Pareceu-me e é de fato bem simples. Deixei tudo bem no jeito para o dia seguinte sair cedo: às 06h00min horas já pretendia estar pedalando rumo à Alfenas/MG.

Antes de dormir confirmei com minha madrinha Maria Lucia, que mora em Campinas/SP, a disponibilidade de eu passar a noite lá. Falei também com Analice, amiga minha de infância e da faculdade, que mora em Espírito Santo do Pinhal/SP, que seria a segunda parada da viagem. Ela confirmou. Poderia dormir por lá, porém ela estaria em Alfenas em seu curso de pós-graduação e deixaria a chave da casa com a secretária em seu consultório para que eu pudesse pegar. Em Poços de Caldas/MG, ficaria em uma república de universitários. Meu contato era Bruno, amigo de meu irmão. Eu não o conhecia, mas ele foi bem solícito e disponibilizou seu lar para eu passar a terceira noite da viagem. Agora sim tudo bem resolvido e eu poderia deitar em paz e descansar para o dia seguinte.

Na manhã de terça-feira, acordei no horário planejado, por volta das 05h00min horas. A meta era sair o mais cedo possível, pois ia passar por um trecho da Marginal Tietê para poder pegar a Rodovia dos Bandeirantes com sentido à Campinas/SP, e queria fazê-lo enquanto o tráfego estivesse o menos intenso possível. Tomei um belo café da manhã, reforçado mesmo, bem diferente do que eu costumeiramente como, chequei tudo e parti.

Logo na saída um resquício de um chuvisqueiro qualquer e no viaduto da Pompéia, um arco-íris indicava que havia sido dada a largada! Um pouco mais a frente vi uma das imagens mais marcantes da viagem: o nascer do sol sobre uma ponte que atravessa o Rio Tietê. Uma imagem fantástica de um Rio tão belo que o homem teve a infelicidade de quase destruí-lo completamente na parte em que atravessa a capital paulista. Certamente é contemplada por poucos, como que se a Natureza fizesse isso em resposta ao descaso do homem com o que lhe é ofertado.

Continuando a viagem, havia pedalado uns 15 quilômetros quando o pneu traseiro furou pela primeira vez. Muito precocemente eu achei. Não queria desanimar e fui logo dando um jeito. Peguei o kit de remendo e mãos à obra. Removi a roda, retirei a câmara de ar e enchi-a para observar onde era o vazamento. Eram dois furos, porém um deles eu não conseguia remendar. Andei um pouco pelo acostamento até encontrar uma entrada que dava em um bairro já periférico da cidade de São Paulo. Andei um bocado à pé, cerca de uns 2 km, até encontrar uma bicicletaria.  Lá aproveitei e comprei um retrovisor, além de trocar aquela câmara furada por uma nova e levar uma câmara reserva para caso houvesse outro incidente semelhante. Amigos já haviam me alertado sobre os acostamentos dessas rodovias de maior volume de caminhões. Eles ficam cheios de araminhos e objetos pérfuro-cortantes que vão se soltando desses veículos maiores e acabam por furar os pneus da bicicleta.

Percorri em um ritmo relativamente bom até exatamente a frente do parque de diversões Hopi Hari. Lá novamente tive problemas com o pneu. Dessa vez troquei logo a câmara de ar furada pela nova, enchi-a com a bombinha que levava comigo e fui até Campinas. Essa minha bombinha de mão não era lá essas coisas, portanto o pneu não estava numa calibragem legal e eu custava pedalar, pois a bicicleta parecia bem mais pesada do que ela realmente é. Na entrada da cidade a primeira coisa que fiz foi procurar um posto de gasolina e encher adequadamente o pneu em um compressor de ar decente para terminar de chegar ao apartamento de minha tia. Guardei a bicicleta juntamente com as dos outros moradores do prédio e subi. Lá fui logo tratando de colocar a roupa que estava pedalando na máquina e fui para o banho. Uma das sensações mais incríveis dessa vida é essa: depois de um dia todo de cicloviagem, perrengues, pneus furados, você chegar ao seu destino, tomar um belo banho e ter onde descansar o corpo.  Minha madrinha chegou do trabalho junto com seu marido. Comemos, conversamos bastante e aproveitamos para matarmos a saudade. Antes de deitar, resolvi deixar em Campinas algumas roupas que estavam fazendo muito volume na mochila e eu certamente não precisaria delas. Essa alteração no peso da mochila foi muito válida, porque durante todo o dia pedalando a sensação que dá é a de que ela vai ficando mais pesada a cada quilômetro, e quanto mais leve ela estivesse, mais prazerosa seria a viagem.

Atrasei-me um pouco para sair de Campinas. Na verdade estava contando com um bom rendimento durante as pedaladas e isso se confirmou. Atravessei toda a cidade de Campinas e peguei a estrada sentido Mogi Guaçu/SP. O tempo estava firme, céu limpo e muito sol. Almocei em Mogi Guaçu e dali até Espírito Santo do Pinhal/SP seriam mais ou menos 40 km. Após o almoço, o tempo começou a dar uma guinada incrível. Uma tempestade se formava e eu já tratei logo de deixar a capa de chuva que tinha ganhado de tio David, esposo de minha madrinha Maria Lúcia, no jeito para vesti-la. Pedalar na tempestade foi uma mistura de prazer, apreensão, e sensação de estar desafiando a natureza, obviamente, respeitando a sua magnitude. Na cidade, fui procurar o consultório de Ranieri e Analice, o casal de amigos que me emprestara a chave de sua residência para que eu passasse a noite lá. Conheci a secretária deles, peguei a chave com ela e fui conhecer a casa que ficava nos fundos do consultório. Deixei minhas coisas no chão da sala mesmo e realizei o mesmo ritual da noite anterior na casa de Tia Maria Lúcia. Eles moravam bem próximo da praça da igreja Matriz, e fui até lá para comer um lanche no trailer que Analice tinha me sugerido. Era um trailer bem simples, como os de Alfenas mesmo: mesinhas de plástico, tubos de maionese na mesa e um lanche bem saboroso. Valeu a indicação! Comprei umas coisinhas para passar a noite, algo para o café da manhã e uma garrafa de vinho para retribuir a generosidade do casal para comigo. Voltei para casa, abri uma latinha de cerveja e comecei a assistir televisão. Parece brincadeira, mas cochilei antes mesmo de terminar de beber essa primeira lata.

O destino agora era Poços de Caldas/MG. Era o dia em que menos pedalaria em quilometragem, porém era o que mais ganharia em elevação. Faria o caminho por Andradas/MG e subiria até Poços. O pneu acabou furando novamente no início da subida da Serra e dessa vez eu já estava com a câmara reserva furada na mochila. Tentei remendar a câmara que estava usando, mas havia um furo que eu não conseguia achar. Eu enchia o pneu e ele não vazava, porém quando subia na bicicleta e pedalava ele começava a murchar. Fui assim até Poços de Caldas. Lá, novamente começou a chover. Eu estava em um bairro do subúrbio e procurava um lugar para almoçar. Acabei achando um self-service à vontade bem barato. Comida bem simples. Comi, bebi um refrigerante de 1 litro e fiquei muitíssimo satisfeito, ainda mais quando a dona do estabelecimento cobrou menos de mim, pois achou que eu havia comido muito pouco. Coisas da vida. Agora a missão era achar uma bicicletaria para reparar minhas câmaras de ar, ambas furadas.

Descendo a rua do restaurante onde almocei havia uma bicicletaria. Indaguei o proprietário se havia possibilidade dele fazer os reparos. Disse-me ele que o funcionário responsável pela manutenção estava de folga naquele dia e que ele não poderia me ajudar. Indicou-me outra bicicletaria mais pro interior do bairro. Fui até o local indicado, mas estava fechado. Decepcionante. Uma bicicletaria fechada, outra que não prestava o serviço e eu com os pneus furados. Subindo o morro da primeira bicicletaria, dois borracheiros chamaram-me e quiseram saber o que se passava. Falei-lhes sobre o problema do pneu furado e que necessitava remendá-lo, porém o dono da bicicletaria não fazia esse serviço. Eles de imediato se colocaram a disposição para me ajudar. Repararam a câmara que estava na bicicleta e a que trazia na mochila também. Paguei-lhes, agradeci e parti sob a forte chuva que caía em Poços de Caldas. Atravessei toda a cidade até encontrar o endereço da República dos universitários, onde Bruno morava. Receberam-me muito bem e deixaram-me à vontade. Coloquei minhas coisas na sala, pois dormiria ali. Eles foram para uma festa da faculdade e eu atrás de comida. Dei uma volta pela redondeza à procura de um trailer, lanchonete, ou algo semelhante. Não encontrei nada que me agradasse, mas no passeio já fui conhecendo o caminho pelo qual sairia da cidade na manhã seguinte. Eles moravam bem próximos à saída de Poços que eu pegaria para ir pra Alfenas. Pedi um lanche pelo telefone mesmo, comi e logo que deitei, apaguei. Acordei somente com a chegada do pessoal que estava na festa. Eles estavam bem alterados e falavam muito alto. Fiquei um tempo razoável até adormecer novamente.

Durante toda a viagem estava mantendo contato com algumas pessoas mais próximas. Uma dessas pessoas era Carlos Eduardo, o Du. Du é um grande amigo. Foi juntos que fizemos uma cicloviagem de Alfenas/MG até Aparecida/SP. Era nossa primeira cicloviagem e foi fantasticamente improvisada. Desde lá nunca mais havíamos pedalado juntos. Os rumos que a vida tomou, trabalho, e tudo o mais não nos deram essa oportunidade. Dessa vez ele acabara de chegar de uma cicloviagem que fez até Montevidéu, capital do Uruguai, e estava descansando em Alfenas. Fomos combinando durante esses três dias um possível encontro no meio do caminho entre Alfenas e Poços.

Amanheceu o quarto dia da viagem. Vesti minha roupa, ajeitei as coisas na mochila, fiz os últimos contatos com Du sobre nosso encontro e parti. Logo na saída de Poços de Caldas, sobe-se a serra de São Domingos, porém antes de chegar ao final da subida, o lanche da noite passada me custou uma “parada de emergência”. Já aliviado, continuei a subida. Uma das paisagens mais impressionantes da viagem estava ali. Um horizonte de montanhas e cores que deixa-nos de queixo caído. Os próximos quilômetros foram de descida e alta velocidade. Nessa hora a adrenalina dá o toque especial e realça a sensação de liberdade que durante toda a cicloviagem já é pulsante. Decidi que não almoçaria e apenas faria um lanche breve para ganhar tempo. Fiz isso em um posto de gasolina após passar a cidade de Campestre. Já chegando próximo ao trevo de Serrania, finalmente encontrei Du, vindo do lado oposto da pista.

Paramos ali por um tempo. Conversa vai, conversa vem, saímos rumo à Alfenas. Antes de chegar em Serrania, paramos em uma venda de beira de estrada para tomar uma garapa. Sentamos para esperar o caldo de cana e uma cena bem curiosa aconteceu ali: um pneu de caminhão desceu a mil pelo acostamento da rodovia. Situação digna de desenho animado! Depois fui saber que é uma coisa que acontece até com alguma certa freqüência, mas até hoje foi a única vez que vi.

Em Serrania decidimos terminar o trajeto até Alfenas pela estrada de terra que ligam os dois municípios. Já estava bem cansado nesse final de viagem. A impressão que eu tinha era a de que meu corpo havia se programado exatamente para aqueles quatro dias. Aqueles 392 quilômetros. A mochila já incomodava demais. Sempre que parávamos para uma hidratação, um descanso, e eu tinha a oportunidade de ficar sem a mochila, sentia um alívio inacreditável. Porém, ali, prestes a chegar à Alfenas, sentia que tudo havia valido a pena.

Enfim chegamos. Juntos, eu e Du, fomos pedalando até uma lanchonete tomar um açaí. Brindar ali mais uma cicloviagem concluída e também nossa amizade. Muito do que utilizei na viagem tem embasamento nas dicas que Du me passou, fruto da experiência de suas cicloviagens anteriores. Sou bastante grato a ele por isso.

Por vezes menosprezamos nossa capacidade, porém tudo que precisamos para conseguir algo está em nós mesmos. Pegar uma mochila, encher de roupas, água, ferramentas de bicicleta, sair pedalando de São Paulo até Alfenas pode parecer algo extraordinário ou pelo menos incomum, mas a partir do momento que acreditamos ser possível, esse feito começa a ser realizado. Eu precisava mudar. Deixar velhas certezas para trás. Ir desapegando daquilo que já não me era necessário. Continuar em frente e apenas com o que eu precisava para ser de fato feliz. E assim tudo começa: acreditando que somos capazes. Capazes de mudar. De realizar. Tenha fé em você e viva. Vai dar certo.


outubro 14, 2016 2 comentários
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O INIMIGO QUE NÃO EXISTIU

Da partida ao primeiro acampamento

O relógio marcava quase uma hora da manhã quando consegui me deitar. Estava bastante ansioso e inquieto com a forte onda de calor que tomara conta da cidade naquela noite. Na cama o suor que escorria por entre o pescoço molhava o travesseiro e parte das minhas roupas. Estava impossível relaxar, não parava um minuto sequer quieto. O tempo andava acelerado e o pensamento de que eu precisava dormir logo afastava ainda mais o sono. Não sei como e quando, mas em algum momento da madrugada eu finalmente apaguei.

As três horas e trinta minutos o despertador tocou. Não me lembro muito bem mas talvez eu tenha até acordado um pouco antes. Abri os olhos sem um pingo de sono. Estava agitado e cansado. Enquanto ia ao banheiro para tomar uma ducha, Débora preparava um delicioso café da manhã na cozinha. No cardápio tínhamos suco natural de laranja, biscoitos, barras de cereal, pão na chapa com manteiga, ovos mexidos e pizza amanhecida. Embora estivesse diante de um verdadeiro banquete de rei, naquela momento mal consegui tocar na comida. A tensão que roubara meu apetite também me presenteou com uma dor muita incômoda na base do pescoço. Nada grave, provavelmente uma contração muscular mais acentuada em resposta a ansiedade do momento.

As cinco horas da manhã Marcell e Rachel chegaram ao apartamento. Tentávamos acelerar ao máximo os trabalhos de montagem pois queríamos estar nas ruas antes que os primeiros raios de sol revelassem a loucura da cidade. Ainda não havia testado a dirigibilidade da bicicleta equipada quando então decidi dar uma voltinha pela garagem do prédio. Estava preocupado com a resistência dos bagageiros e a posição mais elevada que se encontravam os alforjes dianteiros. O centro de gravidade havia se alterado e consequentemente a minha noção equilíbrio. Apesar do amadorismo em tal transporte de cargas me senti bastante confiante para seguir caminho até Paraty. Canarinha já havia provado em outras viagem que é uma ótima companheira de estrada.

Na rua o trânsito crescente de carros e pedestres encerrava de vez a vontade de partir ainda pela madrugada. Anteriormente, durante algumas pesquisas que fiz sobre os caminhos da Estrada Real acabei identificando que o ponto mais crítico da viagem em relação a movimentação de veículos automotores se dava justamente no perímetro urbano de Belo Horizonte. Não tenho problemas em pedalar ao lado de carros e ônibus, mas sempre me sinto bastante desconfortável quando este encontro acontece dentro da cidade. Há sempre um motorista maluco circulando por aí.

Eram quase sete horas da manhã quando Marcell conseguiu  fixar seu ultimo alforje. Eu estava impaciente e queria sair logo dali. Nunca me dei bem com esperas, aliás, esta má administração psicológica me rendeu uma síndrome que carrego desde a infância. A síndrome do intestino irritável, como é comumentente conhecida, é uma alteração psicossomática que ataca o intestino em situações de estresse. Apesar de não ter cura ela não nos traz nenhum risco a saúde, apenas nos causa um desconforto abdominal que pode resultar em prisão de ventre ou numa “bambeira” do intestino. As vezes nem acontece nada, só ficamos na desconfiança. Em casos mais extremos esta síndrome pode ser sim um problema na vida das pessoas, ao ponto de impedi-las de fazer atividades banais do dia a dia como enfrentar filas, aguardar um ônibus, ir ao supermercado e até ir trabalhar. A boa notícia é que tudo isso pode ser controlado com uma boa alimentação e atividade física, aliás, comer bem e correr já está virando clichê médico.

Finalmente estávamos prontos para sair. Da calçada do prédio subi na bicicleta, fiz uma ultima conferência rápida nos equipamentos, zerei o marcador de quilometragem e vesti o capacete. Aflita ao meu lado, Débora aguardava nossa saída. Um abraço, um beijo e uma frase ao seus ouvidos –  Depois do BH Shopping estamos em Paraty. Era assim que eu enxergava esta etapa da viagem. O BH Shopping marcava a nossa saída da rodovia BR 356 e a nossa inserção em estradas mais tranquilas.  Uma vez longe dos carros em alta velocidade nossas atividades se resumiram em tarefas bem básicas como manter a bicicleta ajustada, alimentar-se bem, proteger-se do sol, beber bastante água e claro, ter o cuidado de não perder nenhum detalhe desta experiência maravilhosa que estávamos a viver.

O dia amanhecera frio em Belo Horizonte, nem dava para acreditar que poucas horas atrás uma forte onda de calor quase havia tirado o meu sono. O céu estava azul, nem um pingo de nuvens ou intenção de formá-las. Os fios de cabelo espetados sobre os braços logo foram se acomodando com a presença do sol que entrava por entre as copas das árvores e os prédios da cidade. Na rua íamos somando a cada esquina um novo olhar de espanto e curiosidade.

A caminho de Rio Acima – primeira cidade de pernoite do roteiro –  fizemos três paradas breves para alongamento e hidratação. Os primeiros dias em qualquer viagem de bicicleta são bastante importantes para ditar o ritmo dos dias subsequentes. A ansiedade e a tensão pré-viagem podem confundir os sentidos de nosso corpo e criar condições fantasiosas de dor e desconforto.

Nosso primeiro alongamento foi um pouco antes do trevo que marcava a saída da BR 356. Eu ainda não estava relaxado e sentia uma dor muito incômoda na base do pescoço. Sentia também sede, bastante. A boca seca era mais um sinal de que o corpo estava tenso, ansioso. Cinco minutos foi o tempo necessário para trazer a calma de volta e espantar o estresse.

A segunda e a terceira parada se deram na rodovia de Nova Lima e no pequeno trevo de Honório Bicalho, respectivamente. Ao parar pela segunda vez e feliz por ter deixado Belo Horizonte para trás, retirei o celular que estava na bolsa de guidão e sem nenhum enfeitamento enviei uma breve mensagem a Débora. – Já passamos o BH Shopping , logo mais estaremos em Paraty.

Em Honório Bicalho ficamos perdidos pela primeira vez na viagem, isto porque o distrito é minúsculo e muito bem sinalizado. Errar caminhos em lugares onde teoricamente não se deveria cometer equívocos era uma das poucas coisas que me irritava na expedição. Ao todo andamos mais de quinhentos e cinquenta quilômetros por estradas de terra, sempre guiados por um manual impresso que muitas vezes tinha como referência de manobra objetos como cercas e mata burros, porém foram as cidades os nossos piores inimigos logísticos. Perdíamos tempos preciosos com erros tolos. Na saída do vilarejo encontramos o primeiro totem oficial da Estrada Real. Estava instalado no jardim frontal de uma casa simples, sem muros, grades e muito bem preservada. Na parede externa, logo acima da janela onde provavelmente alguém se debruçava nos finais de tarde para ver o movimento da rua, havia uma placa com oferta tentadora: Vende-se chup-chup. Em algumas regiões do Brasil o  chup-chup é também conhecido por geladinho.  A iguaria simples é feita com refresco congelado armazenado em saquinhos plásticos destes que usamos para empacotar amendoim torrado em época de festa junina. Nosso almoço estava a menos de doze quilômetros dali e não era hora para pensar em sobremesas.

Um pouco antes do meio dia chegamos a cidade de Rio Acima. Na rua parávamos aleatoriamente os moradores da cidade buscando referências por bons restaurantes. Ao dizer bom estou me referindo ao  lugar onde serve-se comida à vontade por preço de pechincha. Trinta minutos mais tarde fomos atrás do campeão de indicações. As instruções para chegar ao local eram bastante simples, do tipo desce esta rua, vire a direita no bar do fulano e depois vai reto até o final. Nos perdemos mais uma vez.

O restaurante que nos foi indicado era de fato muito bom. Lugar limpo, arejado, servia uma refeição bem caprichada por um preço camarada. A comida era suficiente para saciar a fome do almoço e ainda calar o ronco do estômago na hora do jantar. A refeição veio acompanhada de uma jarra de água geladíssima, difícil de ser recusada. Me lembro que estava com tanta sede que acabei bebendo uns três copos cheios de água antes de olhar para a cara do Marcell que já sabia aquela água gelada iria tirar o meu apetite. Da metade do prato para frente eu comia de raiva. A dor no pescoço voltou a me atormentar após o almoço. Acredito que parte do incômodo surgiu com a inclinação que fiz durante a refeição buscando diminuir a distância entre o prato e a minha boca.

De volta as ruas saímos em busca de um mercado para comprar algumas garrafas de água. Sabíamos que as próximas horas seriam de pedaladas por estradas de terra onde até mesmo a presença de propriedades rurais eram escassas. Dentro da cidade ainda nos perdemos por mais duas vezes, agora por informações equivocadas dos moradores. Tempos depois fui descobrir, ao acompanhar uma amiga pela região, que é comum a confusão na cidade em relação a Estrada Real. O mesmo morro que me fizeram subir por duas vezes de barriga cheia foi o mesmo que ela também subiu equivocadamente de carro. Daquele momento em diante eu estabeleci uma regra de não tomar nenhuma direção duvidosa sem ao menos consultar três pessoas distintas. Nunca funcionou de fato como regra.

Alcançar a cidade de Acuruí não era nosso objetivo naquele momento, tão pouco se hospedar em Rio Acima. A idéia era montar acampamento em algum lugar entre estes municípios. O trecho que se seguia era marcado por um terreno bastante acidentado e íncrime. O sol, aos poucos, ia descendo pelo céu. Tinhamos pressa, pois logo a lua daria suas caras.

Por volta das quatro horas da tarde começamos a procurar um lugar para acampar. A dor no pescoço havia retornado e o cansaço acumulado começara a minar minhas reservas energéticas de forma assustadoramente rápida. Eu buscava, incansavelmente, por um sinal de queda d’água ou curso de rio na mata lateral. Precisava de água, muita água. O suor oleoso do corpo combinado com a poeira seca da estrada de terra já estavam me deixando com cara de tijolo, se é que existe esta comparação.

É comum aproveitarmos as descidas para ganhar velocidade e descansar um pouco as pernas, porém desta vez eu acabei descendo a serra bem devagar. O objetivo era manter os ouvidos atentos buscando encontrar qualquer ruido que nos apontasse para um curso de água, rio ou cachoeira. Não sei explicar muito bem os motivos que me levaram a percorrer aquele trecho lentamente, mas o fato é que esta escolha instintiva preparava uma bela surpresa pela frente.

Próximo ao final da descida notei que ao meu lado direito a mata encontrava-se um pouco mais aberta que o habitual, talvez uma trilha aberta pelo homem. Estacionei a minha bicicleta ao lado de uma árvore e pedi para que Marcell a vigiasse enquanto eu verificava se aquela entrada. Enquanto caminhava entre a vegetação parcialmente fechada percebi que o som que eu julgava ser das folhas das árvores tocadas pelo vento era na verdade o barulho de águas correntes. Apressei os meus passos até que a mata se abriu de vez e eu pude avistar um rio de águas cristalinas e margens formadas por pedrinhas brancas ovaladas. A felicidade explodiu dentro de mim. Voltei as pressas para a estrada e sem explicar muito o que havia visto convenci Marcell de que aquele era o lugar ideal para pernoitarmos.

Eu estava eufórico, não sabia se tomava banho de rio, se montava acampamento, preparava comida, lavava roupa ou se ficava apenas observando a paisagem. O sol foi quem ditou as regras. Mergulhar durante a noite era uma opção inviável tanto pelos riscos de acidente quanto pela temperatura congelante da água. Todas as outras opções eram relativamente simples de serem executadas no escuro com auxílio de lanternas. Foi assim então que me joguei no rio e fiquei por lá quase trinta minutos sem fazer absolutamente nada. Lavei o corpo, a alma e acidentalmente o celular que estava no bolso da bermuda. Ao descobrir que o aparelho telefônico ainda encontrava-se comigo ainda tive tempo de assistir seu último piscar de tela antes de se apagar completamente. Fiquei chateado pois não mais conseguiria me comunicar com o pessoal de casa. Até hoje não consigo entender como ele se manteve ligado por tanto tempo debaixo d’água e só entrou em colapso no momento exato em que eu o retirei do rio. Sem saber o que fazer abri o celular e o deixei debaixo do pouco sol que ainda restava no céu.

De banho tomado fui preparar o jantar. Estávamos carregando nos alforjes uma porção de legumes frescos para os primeiros dias de viagem. Tínhamos também também arroz, feijão liofilizado, temperos, macarrão, refresco em pó e claro, muita fome. Fatiei um pouco de cenoura e mandioquinha salsa, misturei com arroz cru e alho desidratado e uma pitada de sal. Coloquei tudo em uma panela com água e deixei cozinhar em fogo baixo por uns vinte minutos. Enquanto a comida ia chegando ao ponto fui buscar minhas garrafas de água que estavam as margens do rio. Certa vez li no livro O Recado do Morro de João Guimarães Rosa o relato curioso de alguns tropeiros que resfriavam garrafas de cerveja lançando-as amarradas em cordas dentro de rios. Obviamente não era a minha intenção. As garrafas só estavam as margens do rio porque as deixamos em repouso enquanto as pastilhas de cloro terminavam o processo de purificação.

Antes de dormir e depois de ter feito as tarefas de casa de lavar a louça e escovar os dentes ainda tirei um tempo para escrever em meu diário. O sono veio e eu nem percebi.

A meia noite em ponto abri os olhos assustado sem saber qual era o motivo do espanto. Deitado com a barriga para cima passei a observar os ruídos que vinham da vegetação. Eu não sabia, mas naquele momento Marcell também estava acordado dentro de sua barraca. De repente ouço um barulho grave como se algo pesado tivesse sido colocado próximo de nós. Sutilmente estico a mão direita para alcançar meu canivete quando sou surpreendido por uma forte rajada de luz. Pensava nas bicicletas estacionadas do lado de fora sem nenhum cadeado. Munido com o canivete e lanterna em mãos fui cuidadosamente abaixando o zíper de entrada da barraca quando novamente ouvi o ruído grave. Pensei por alguns segundos como estavam dispostos as nossas coisas no acampamento e então explosivamente me joguei para fora da barraca. Marcell imediatamente fez o mesmo. Ali reunia-se a dupla mais patética de cicloviajantes já vista na história da Estrada Real. Se naquele momento o nosso inimigo não fosse os raios e trovões marcando a chegada da chuva, certamente o amigo leitor não estaria lendo este relato hoje.

Não passou por minha cabeça em nenhum momento que poderíamos pegar chuva naquele dia. Da saída de Belo Horizonte até o momento em que o sol se pôs, não havia qualquer possibilidade visível de pegarmos uma chuva. Pelo menos pudemos manter nossas bagagens secas e dormir em paz.


VEJA TAMBÉM OS OUTROS CAPÍTULOS DESTA VIAGEM
INTRODUÇÃOPARTE 2

 


setembro 24, 2016 2 comentários
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O filme – de nome que lembra mais uma frase inacabada – é um drama búlgaro escrito e dirigido por Stephan Komandarev, artista que carrega em sua mala cinematrográfica mais filmes do gênero documentário do que filmes de ficção. O mundo – chamaremos assim para simplificar a leitura – não é nenhum blockbuster das premiações internacionais, mas é com certeza uma ótima pedida para quem deseja conhecer um pouco do cinema do leste europeu.

Sinopse

Alexander Georgiev – ou Alex – é um garoto nascido na Bulgária que se mudou para a Alemanha com seus pais depois de um processo conturbado de fuga após o fim da Guerra Fria.
Anos mais tarde durante uma viagem de visita a casa de seus avós, Alex se envolve em um grave acidente de carro com sua família e perde completamente a sua memória. Bai Dan, seu avô, decidido em ajudar o jovem a recuperar sua memória, embarca com o neto em uma longa viagem de bicicleta que percorrerá caminhos da infância de Alexander.

Opinião

O Mundo é um daqueles filmes que muita gente deixa de assistir por ser originário de um país que supostamente não tem grandes influências no cinema popular mundial. É verdade que filmes do leste europeu – principalmente – podem não ser tão vendíveis, mas isso não tem nenhuma relação com a qualidade de suas obras. Eu, particularmente, sou um grande fã do modo como são produzidas as películas no velho continente.

Pois então. O Mundo é uma obra de enredo simples mas que carrega um conteúdo emocional bem marcante e envolvente. Cento e cinco minutos de duração – quase duas horas – e você termina de assistir achando que foi breve demais. Outro dia li uma crítica ao filme que dizia o seguinte: “o filme em alguns momentos é um pouco bobo, em outros muito triste, mas o tempo todo ele se mostra bem otimista”. Esse otimismo todo se apresenta muito bem nas cenas em que Alex e seu avô estão viajando de bicicleta por estradas que partem da Alemanha e vão até a Bulgária. Interessante é que esta viagem de volta para a casa dos avós é toda feita sobre uma única bicicleta do tipo “tandem”, aquelas que acomodam duas pessoas pedalando ao mesmo tempo, uma atrás da outra.

Para quem gosta e sonha em viajar de bicicleta, o filme pode ser um bom chamado para começar a encher os pneus murchos daquela bici encostada na garagem. Mais uma obra prazerosa de se assistir. Atentos a trilha sonora; propositalmente repetitiva, significantemente bela.


TRAILER

julho 26, 2016 0 comentário
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Belo Horizonte, Agosto de 2013

O AMANHÃ NUNCA CHEGA
Os dias que antecederam a partida

Carlos, vou ter que sair do projeto. Meu computador não está mais conseguindo trabalhar com imagens em alta resolução. – A poucos dias da entrega de um projeto que indiretamente financiaria toda a minha viagem pela Estrada Real, Thiago, amigo e parceiro de trabalho, se viu obrigado a abandonar o seu posto.

O relógio que anteriormente já não funcionava honestamente nas suas vinte e quatro horas de repente passou a girar seus ponteiros tão rápido quanto faria as pás de um liquidificador. O tempo voava alucinadamente e carregava consigo as poucas ideias e soluções que ainda me restavam.  Eu precisa vencer os atrasos, o sono, o cansaço e vontade de desistir de tudo.

Não estava preparado para abandonar um bom projeto, perder um fiel cliente e ainda deixar uma viagem que havia planejado há meses escapar por entre os dedos de minha mão. Eu precisava de uma solução urgente e Hamilton, parceiro de outros projetos e amigo de boa safra topou entrar neste barco furado comigo. Thiago receberia a sua parte pelo que já havia feito e Hamilton assumiria o restante e seus devidos honorários.

Neste momento entrou em cena uma senhorita muito simpática pela qual me enrosquei nos amores desde os tempos da Arca de Nóe. Débora passou a integrar o time. Todos os dias após o trabalho ela vinha até minha casa para ajudar nos preparativos da viagem. Pobre coitada, nem mesmo o mais fraco dos jogadores de futebol de um time de várzea ficaria tão na reserva quanto eu a deixei. Apesar da minha indelicada falta de atenção foi ótimo estar na companhia daquela adorável mocinha. Durante as madrugadas entre minhas brigas com o sono e algumas imagens finalizadas ainda tinha tempo para me divertir, observando sob risadas, aquela criaturinha dobrando e desdobrando sobre a cama na simples tentativa de permanecer acordada enquanto eu, facilmente trocava a noite pelo dia.

Os trabalhos foram retomados. Hamilton ainda precisava entender como tudo estava sendo organizado e a falta natural de entendimento me deixava um pouco preocupado. Não demorou muito para que as madrugadas não fossem mais de trabalhos solitários. Do outro lado da conexão Hamilton se dedicava incansavelmente a montagem do projeto e Marcell, amigo, biólogo e companheiro de viagem não ficou de fora do pagode. Todo dia por volta das 10 horas da noite ele ligava o seu computador e o disponibilizava para acesso remoto. Da minha casa eu operava, enviava arquivos e produzia imagens que só seriam vistas no dia seguinte.

Não pedalava há mais de um mês e já havia trocado as boas refeições por pizzas vagabundas e biscoitos recheados. Meus banhos eram de invejar qualquer ativista ambiental. Seguia rigorosamente os mandamentos da vida sedentária e da morte precoce. Do outro lado Hamilton também assinava seu atestado de óbito e Marcell provavelmente já havia xingado seis gerações da minha família por conta dos atrasos.

Por falha minha a viagem já havia sido remarcada algumas vezes e o roteiro ainda estava um pouco distante de ser fechado. Minha preocupação se tornou visível quando próximo a nova data de partida notamos que ainda tínhamos em mãos quatro bagageiros que não serviam em nenhuma de nossas bicicletas. Eu sabia que sem bagageiro e sem projeto estruturado esta viagem correria o sério risco de ser adiada para o ano seguinte. Minhas férias estavam programadas e a época de chuva estava quase iniciando. Dias mais tarde Hamilton conseguiu finalizar sua parte na produção e finalmente estabelecemos a data para o início da viagem; domingo.

Na quinta-feira Marcell e eu fomos até uma pequena serralheria que havia no bairro. No local encontramos muita ferragem jogada no chão, pouco espaço de trabalho e um ambiente mal iluminado. Fomos atendidos por um senhor de poucas palavras, cabelo grisalho, rosto sofrido, barriga bem servida e bastante disposto a ajudar. Na época eu ainda nem imaginava que viria a me formar tecnicamente como soldador e portanto entendia muito pouco dos processos de soldagem. Acreditava que todo o trabalho naquela oficina não levaria mais do que uma hora para ser finalizado. De fato a soldagem em si é bem rápida, o que pode tomar tempo são as etapas de preparação de material. Foi com esta inocência que por volta das oitos horas da noite e depois de permanecer quase cinco horas dentro da oficina, Marcell e eu, a beira de um colapso nervoso, finalmente conseguimos encaixar os bagageiros nas bicicletas. Na sexta-feira pela manhã ainda tivemos que voltar ao serralheiro para fazer alguns pequenos ajustes na estrutura. Durante a tarde Débora e eu quebrávamos a cabeça em casa esparramando sobre a cama itens que seriam levados na viagem como estojo de primeiro socorros, higiene pessoal, ferramentas, barraca, fogareiro, saco de dormir dentre outros. Aos poucos fomos catalogando e separando um a um.

No sábado pela manhã enquanto aguardávamos a chegada de Marcell e sua namorada Rachel, Débora e eu decidimos ir ao mercado para comprar alguns itens que estavam faltando. Nossa tarde foi dedicada exclusivamente ao trabalho de montar as bicicletas.

Débora, cadê as baterias? Marcell, você acha interessante levarmos isto? Nossa, já está ficando escuro lá fora. Apesar de todos os esforços de uma equipe bem concentrada e dedicada as previsões que outrora apontavam para uma logística falha agora se tornavam reais. Por todos os cantos da casa era possível encontrar objetos esparramados sobre o chão. Talvez a única diferença visual naquele momento entre o nosso ambiente de trabalho e o de um vendedor de Marrakech era a sua posição geográfica no planeta. O dia estava muito próximo de acabar e eu estava faminto e cansado. Teoricamente a viageminiciaria dentro de algumas horas e era fácil resolver aquela confusão. Juntaríamos tudo aleatoriamente e jogaríamos dentro dos alforjes. Apesar de ser tentadora a opção de se libertar dos planejamentos massantes e intermináveis esta escolha poderia nos trazer muitas dores de cabeça lá na frente.

Não vamos viajar amanhã. Não podemos sair com as coisas arrumadas de qualquer jeito. Marcell concordou imediatamente, talvez já estivesse enxergando esta possibilidade enquanto eu ainda tinha esperanças de íamos conseguir finalizar a montagem ainda no sábado. Esta decisão trouxe um alívio imediato para equipe e um bônus bem agradável. Tínhamos agora um dia completo pela frente para colocar tudo no eixo de forma pensada e segura. O dia extra rendeu ainda a fabricação de dois pequenos travesseiros feitos a partir de uma espuma velha que estava jogada atrás do sofá. Ideia fantástica que certamente nos polpou de uma consulta ortopédica pós Estrada Real. Era madrugada quando o casal de amigos se despediu e fomos dormir.

Tudo que eu não queria era sair para viagem em plena segunda-feira estando em uma capital.  Pensar no trânsito que me aguardava nas ruas me deixava bastante desconfortável. Embora eu já tivesse outros experiências com viagens mais curtas, desta vez eu estaria carregando uma quantidade de bagagem significativamente maior. Na internet os conselhos eram para que fosse feito um teste primeiramente com a bicicleta montada antes de sair definitivamente para viagem. Ótima dica se não fosse pelo fato de que quase 100% das pessoas que aconselham fazer o teste nunca o fizeram de fato. É bem compreensível o motivo pelo qual as pessoas desistem desta tarefa uma vez que não é nada legal equipar uma bicicleta inteira simplesmente para dar uma voltinha no quarteirão. Se for cair, vai cair de qualquer jeito, a estrada é o caminho e a escola.


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PARTE 1

 


julho 26, 2016 0 comentário
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De todas as vezes que saí para uma viagem de bicicleta sempre tive ao meu lado um bom amigo para dividir, em tempo real, as glórias e os fracassos de um intenso dia de pedalada. Como era gostoso sentar à sombra de uma árvore robusta de folhas graúdas depois de enfrentar uma longa subida em um dia de calor fervente e se queixar, com o amigo ao lado, das dificuldades que enfrentamos até ali. Entrávamos em sintonia nas angústias até que o desconforto dava lugar a boas risadas que, por fim, nos serviam de combustível para rodar alguns quilômetros a mais até que repetindo o ritual, nos acolhíamos debaixo de uma outra árvore.

Desta vez a história seria diferente. Aqueles velhos roteiros que outrora me fizeram abraçar alguns poucos estados brasileiros agora iriam me lançar para uma viagem internacional. Estava saindo do meu país, pela primeira vez, em cima de uma bicicleta.

Eu, Canarinha e o mundo.

Viajar sozinho era uma novidade de muitos estranhamentos pra mim. Leituras aventurísticas como aquelas de Amyr Klink acabaram por abrandar um pouco os medos e as incertezas que andavam tirando o meu sono na véspera da viagem. Amyr, velejador solitário, realizou algumas das maiores façanhas de nosso tempo administrando seus medos e planejando suas viagens de maneira impecável. Diferente de suas aventuras pelos oceanos do mundo, eu sabia que uma viagem sobre uma bicicleta poderia ser levada um pouco menos a sério. Não que eu me sentisse totalmente livre a ponto de negligenciar detalhes importantes na construção do projeto, mas eu sabia que poderia ter em mãos um roteiro mais aberto. O tipo de viagem me permitia isso; não ficaria muitos quilômetros longe da civilização embora estivesse certo de que cruzaria por alguns caminhos de pouca habitação.

E foi assim, entre arrumações e afetos, que naquela manhã quente de sexta-feira do dia dezessete de outubro deixei a pequena cidade de Alfenas no Sul – MG para embarcar em uma das experiências mais belas de minha vida.

Da despedida de pouca parte da família presente, de alguns vizinhos que saíam para o trabalho, ainda encontrei minha mãe, seu companheiro e meu irmão na saída da cidade. Passei por eles, parei para um último abraço e parti, seguindo os ventos de uma carreta que acabara de passar por ali.

As últimas abanadas daquelas mãos que me brindavam com sinceros “até logo” foram se perdendo no horizonte. Os meus olhos, míopes por uma peça pregada pela genética, se tornaram ainda mais ofuscados quando as lágrimas os encheram de alegria e emoção.

À minha frente estava uma longa e desordenada estrada tipicamente mineira. O dia, que amanhecera “morno”, preparava aquela que seria a surpresa mais desafiadora de toda a viagem: três dias de muito morro sob um sol na casa de seus 40 graus.

Insolação foi o troféu do primeiro dia de viagem. Pedalar durante a noite a premiação do segundo dia e a falta de almoço estourou os fogos de artifício da minha chegada à cidade de São José dos Campos, no estado de São Paulo.

De lá, subi a Serra do Mar debaixo de uma chuva fina e fria. Senti as piores dores musculares da viagem quando, passados aqueles três primeiros dias de muita superação, enrijeci o meu corpo por completo na tensão de estar iniciando a descida de uma serra sem acostamentos, com visibilidade baixa e na companhia de incontáveis caminhões.

Serra do Mar

E de repente a chuva parou, o acostamento surgiu e uma clareira se abriu entre as copas fechadas das matas laterais. Revelou-se ao fundo uma das mais belas paisagens já vistas por meus olhos. Daquela sacada dos deuses eu pude avistar a imensidão do Atlântico, a infinitude das praias do litoral paulista e as contorcidas montanhas que formam o imponente paredão da Serra do Mar.

E de Caraguatatuba fui ainda enfrentar alguns sobes e desces na paradisíaca região de Maresias e Boiçucanga. Acampei pela primeira vez em um quintal de casa. Bati recordes de velocidade e desempenho atravessando a Baixada Santista e fui me repousar em Peruíbe, acolhido em uma casa de avó. Cruzei por mares de banana em uma das maiores regiões produtoras desses potássios no Brasil e perdi a chance de justificar meu voto nas eleições por puro desejo de chegar ainda com luz do dia à cidade de Registro.

Tive a pior noite de sono num barato hotelzinho que estava bombardeado de sequestradores de hemácias, ou pernilongos, como queiram chamar. Tive também o mais patético avanço em viagens quando acordei às cinco horas da madrugada para descobrir que o pneu da bicicleta estava furado e que não conseguiria sair da cidade antes das 9 h 30 min. Cheguei a Cajati, míseros quilômetros à frente, e resolvi abrir mão daquele dia que começara às avessas. Entrei no estado do Paraná sem saber que já estava por lá e perdi a chance boba de comemorar a conquista embaixo de uma daquelas plaquinhas de fronteira. Fui apresentado à Estrada da Graciosa e acreditei que a viagem já poderia ter acabado por ali. Cheguei em Morretes, a terra do barreado, e só fui descobrir os detalhes deste prato culinário quando já estava saindo do estado, o que não durou muito, o litoral do Paraná é minusculamente charmoso. Ah, sou vegetariano.

Em Guaratuba brindei um dia de milionário ao me hospedar em uma pousada de frente para o mar. O que a ocasião não mostrava é que o quarto era minúsculo e a hospedagem tinha preço de comida a quilo de mercadão.

Entrei em Santa Catarina e aprendi a chamar São Francisco do Sul de São Chico. Conheci um casal de cicloturistas da Espanha que saíram para o mundo há quatro anos e visitei o tão sonhado Museu Nacional do Mar. Ainda sem lugar para me abrigar entrei no gingado do acaso e, por tabela, não só encontrei uma segunda mãe na cidade como também recebi o carinho de sua hospedagem por dois preguiçosos dias. Tudo uma conspiração do universo que chegava a dar nó no cérebro quando eu tentava encontrar uma lógica para tudo aquilo.

Em Navegantes ganhei um passeio turístico com direito a guia e tudo mais e de quebra transformei o que era uma amizade virtual, em real. Mais uma vez como frequentemente aconteceu nesta viagem, fiz amigos e construí famílias para a vida toda.

Em Florianópolis pude reviver um pouco dos meus abandonados anos de engenharia que cursei ilha. Hospedei-me por dois dias na casa daquele que apelidei ser a lenda viva do cicloturismo brasileiro, Nelson Neto.

E laguna não é o mesmo que lagoa. Finalmente alcançava a cidade de Laguna, última parada antes de invadir o Rio Grande do Sul. Já começava a sentir os ventos que assopram esta extensa região de relevos baixos e me deliciava com as intermináveis plantações de arroz que enfeitavam as laterais da BR-101. Folhinhas verdes e finas de se perder de vista atoladas em extensos piscinões de terras alagadas. Um salmão bastava para termos ali o maior menu japonês da história das galáxias.

Deixei Santa Catarina com um saldo de memórias belíssimas e com uma vida “ressuscitada” de um pássaro atropelado. Brinquei de 192 e recebi as palmas de uma plateia imaginária.

Reserva do Taim

Em Torres minha alma perdeu seu fôlego pela enésima vez. Vim, brotando nas águas rasas do Atlântico, senhores paredões de muita imponência e respeito. Os espíritos brindavam a vida por ali.

Já na terra do chimarrão quase me afoguei nas estradas ao passar por intermináveis lagoas, lagos e lagunas até alcançar a quase inexistente cidade de Capivari do Sul. Acampei na varanda de um restaurante. Em Osório senti no peito a força dos ventos que colocam a girar o maior parque eólico da América Latina. Entendi que as árvores por lá não estavam tentando fugir de ninguém e que foram os estrondosos sopros da mãe natureza que as borraram naquela paisagem lavada pela falta de abrigos.

Experimentei Mostardas mas fui mesmo me encantar com a cidade de Tavares. Como pode uma cidade tão pequena, tão longe de tudo e de todos, ter um dos povos mais acolhedores e simpáticos deste país? Talvez seja influência das centenas de milhares de belas aves que por lá repousam todos os anos vindas de todos os cantos do planeta. E num golpe de pura bondade do destino, fui apresentado a uma família de ouro na portuária São José do Norte. Senti a história brotar naquelas ruas através das palavras do anfitrião.

Da cidade das grandes embarcações saí, debaixo de chuva, para o último grande desafio em solo brasileiro. Das aulas de geografia do ensino fundamental revivi memórias da infância e o sonho de conhecer a tão citada cidade de Chuí. Acabara de embarcar para uma programada etapa de dois dias de viagem até o extremo sul do Brasil. Chuva, ventos gelados e problemas com a bicicleta me fizeram trocar, no primeiro dia da jornada, um aventureiro acampamento em posto de gasolina por um seguro e aconchegante galpão aos fundos de uma Brigada Militar. Ah, como fui bem acolhido e recebido pelos lugares em que passei.

E no segundo dia, na tentativa de alcançar a fronteira do Brasil, embrenhei-me nas alagadas terras da Reserva do Taim. Vi muitos animais silvestres mortos pela pressa do homem e suas máquinas, mas vi também muita vida bela em liberdade. Tentei brincar de esconde-esconde com algumas tartarugas mas desisti quando elas se recusaram a sair de casa. E pensando estar próximo ao Uruguai tive que adiar essa conquista. Dessa vez não me escapou o posto de gasolina.

E finalmente, depois de três longos dias percorrendo a quase inóspita Rota Extremo Sul, cheguei à cidade brasileira de dois idiomas. Das criações do meu imaginário de uma cidade aos moldes coloniais restaram-se poucas ruas pavimentadas, muito comércio, construções mal conservadas e cheiro de muito consumismo. Chuí não era o eu que pensava ser, mas foi deliciosamente bom conhecê-la como realmente ela é.

Posto de Gasolina

“Tarjeta Internacional de Entrada”. Finalmente estava pronto para dar o último grande passo na conquista de um sonho. Mais uma vez a miopia tomou um belo banho de salmoura. O sr. Atlântico logo veio me dar as mãos e dizer: vou estar contigo em todos os momentos até que você chegue a salvo e feliz ao seu destino final, a capital da República Oriental do Uruguai.

Encantei-me com as primeiras cores do Uruguai e me casei com Punta del Diablo quando a conheci. Falava espanhol tão bem quanto um berimbau desafinado. Traí. Desfiz o meu matrimônio com as encantadoras curvas “del Diablo” quando me deitei nas majestosas praias de Cabo Polônio. Troquei as contagens de quilometragem pelos números de nasceres do sol que ainda me restavam até Montevidéu.

E ele veio, o último brilho do acordar da mãe estrela antes de entrarmos de corpo e alma nas terras dos revolucionários Tupamaros. Os deuses do clima me brindaram a chegada com um gelado banho vindo dos céus.

Socava os ares enquanto proferia palavras sujas de alegria. A insanidade mental assumiu as rédeas dos meus atos até que finalmente, no deleite de um aconchegante albergue de Montevidéu, caí para o repouso da vitória.

E após 34 dias de viagem, 2.930 quilômetros rodados, eu havia finalizado uma das mais intensas páginas da minha vida, que ainda guardava uma memorável surpresa: o encontro com José Alberto Mujica Cordano, o “Pepe”, um dos presidentes mais amados do planeta. A surpresa veio em forma de combo: o famoso fusquinha azul calcinha que já havia sido negado à venda pelo valor de um milhão de dólares, a histórica personagem Lucía Topolansky, também apresentada como primeira dama, e claro, a figura mais carismática da atual política mundial, o presidente do Uruguai, Mujica. Um encontro simples como manda o figurino. Área rural em uma região de baixa renda ladeada por cãezinhos revoltados com aquele viajante de trajes lunáticos. Um demorado aperto de mão, algumas palavras de admiração e o espanto de Pepe ao descobrir que eu partira de Minas Gerais, o que acabou culminando nas suas sinceras palavras de sorte. Tudo cuidadosamente organizado por aquelas mãos invisíveis citadas por Joseph Campbell no livro O Poder do Mito. A cereja do bolo ou a chave de ouro, seja qual for a denominação para aquele encontro, pra mim foi a definição de que não existem hierarquias entre homens de bom coração.

Dos grãos de areia das praias que nunca se repetiam aos distintos cantos dos cardeais das planícies do sul, tudo era singularmente magnífico e emocionante. E por fim, posso dizer com a ternura de uma alma viajada: fiz amigos para a vida toda e memórias para muitas gerações.

Viajar é bom, de bici então, não tem preço.

ESTA VIAGEM ACONTECEU EM OUTUBRO DE 2014 E FOI PUBLICADA NA EDIÇÃO DE MARÇO DE 2015 DA REVISTA BICICLETA.

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julho 22, 2016 0 comentário
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