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O CÃO E O COVEIRO
A tentativa de chegar em Glaura

O dia amanhecera bonito na região de Rio Cima. Acordar e saber que Acuruí, cidade onde faríamos a nossa parada para almoço, não estava distante, nos deixou um pouco preguiçosos no café da manhã. Marcell carregava em seus alforjes algumas ervas que ele havia comprado no mercado municipal de Belo Horizonte antes da viagem. As informações eram de que as folhas deveriam ser consumidas em forma de chá e sua atuação no organismo era de caráter anti-inflamatório e analgésico. Nós costumávamos tomar o chá todos os dias pela manhã e a noite depois do jantar. Apesar de ser muito crente em relação ao uso de plantas em medicina preventiva e alternativa, eu não estava levando muito a sério que aquela coleção de plantas desidratadas, que continha até folhas de camomila, poderia ter efeito em uma viagem relativamente curta como a nossa. Se o efeito era certo eu não poderia dizer, porém a única vez que senti dores nas pernas durante a viagem foi exatamente dois dias após eu ter abandonados os chás. Estava subindo os últimos quilômetros da Serra do Mar quando fui pego por fisgadas dolorosas na musculatura frontal da coxa esquerda.

O sol dava seus primeiros sinais de castigo. Daqui para frente vou poupar o leitor de ficar se cansando com os relatos de exaustão em morros intermináveis e sol escaldante, pois, teoricamente, todo brasileiro sabe como é o relevo em Minas Gerais.

Era quase uma hora da tarde quando chegamos ao trevo de Acuruí. A cidade que pertence a rota oficial da Estrada Real está localizada em uma das regiões mais aquíferas dos entornos da capital mineira e tem como vizinhos importantes as serras da Gandarela, Caraça, Capanema e um pouco mais distante a serra do Cipó. A cidade fica no pé de um vale a beira da represa Rio das Pedras, que na tradução para tupi-guarani forma o nome da cidade. Acuruí ainda preserva sua arquitetura peculiar da época em que era uma vila estratégica para tropeiros e mineradores de ouro. Depois que o ouro na região se esgotou muitas famílias abandonaram o lugar deixando para trás somente as pessoas mais idosas ou com crianças muito pequenas em casa. Assim a cidade se conservou tendo pouco crescimento desde então.

Entramos em Acuruí com calma procurando por alguém nas ruas que pudesse nos dar uma indicação de algum lugar para comer, porém quanto mais adentrávamos na cidade menos esperançoso eu ficava de encontrar um restaurante aberto aquela hora. As ruas estavam vazias e pouquíssimas casas tinham suas janelas abertas, apesar do forte calor.

Pedalando sem rumo pela cidade acabei avistando, algumas dezenas de metros à frente, um senhor trabalhando naquele que deveria ser o pouco habitado cemitério da cidade. Homem magro de pele enrugada e marcada pelo sol, vestindo uma camisa de algodão molhada por suor e um boné que mal dava para definir a cor. Naquele terreno com enxada em mãos, retirava os matinhos que cresciam ao redor dos túmulos enquanto aguardava, pacientemente, a chegada de um novo e eterno hóspede. A sua frente, do outro lado do muro, encontrava-se a igreja de Nossa Senhora do Rosário, construída no século dezoito para celebrar missas para os negros e escravos.

Nos jardins desta igreja acabei me surpreendendo ao encontrar uma das maiores matilhas que já havia visto na vida. A cada cão que latia com a nossa presença, outros dois se revelavam no meio do mato. Surgiam cães em proporções exponenciais. Se não fosse pelo encontro prévio que tivemos com o coveiro, e até então não havíamos encontrado ninguém pelas ruas, eu desconfiaria que Acuruí era governada por aqueles bichinhos enfurecidos.

Nossa única referência no momento continuava sendo o coveiro. Tivemos a ideia de entrar no cemitério para conversar com o homem, porém, não encontramos nenhuma entrada nos entornos do terreno. Como vamos entrar aí? – perguntei. Marcell adiantou a resposta e com seus quase dois metros de altura apontou a cabeça sobre o muro e por muito pouco não matou de susto aquele senhorzinho do boné desbotado. Perguntamos por um restaurante aberto e o homem nos respondeu. Deixamos o lugar mais uma vez sem saber para onde ir. Ninguém entendeu absolutamente nada do que foi dito. Neste instante avistamos um carro apressado que subia a rua em nossa direção. Conseguimos pará-lo. Coincidentemente, o motorista do carro estava fazendo entregas de marmitas pela região. As refeições eram montadas por dona Eliana, proprietária do único restaurante de Acuruí, chamado Mãos Dadas. O lugar é bem simples, montado com mesas de madeira maciça em um aconchegante corredor de garagem. Éramos os únicos clientes naquela hora, mas a comida estava no fogo e foi servida com fartura de sabor e qualidade.

Eliana guardava sobre o balcão um caderno bem legal com centenas de mensagens deixadas por viajantes da Estrada Real. Enquanto eu fazia minha contribuição histórica naquele livro de recordações, o céu se fechou repentinamente e desabou em águas torrenciais. Por alguns minutos deixei que o tempo me levasse. Ali, sentado num banquinho de madeira, fiquei observando a água escorrer por entre as folhas verdes de uma árvore, enquanto na minha cabeça tentava recriar cenas da vida em Acuruí nos tempos do Brasil antigo.  Pensava que a mesma chuva que na rua lavava as pedras das calçadas, outrora havia de ter aborrecido algum coronel que saiu de casa sem carregar o seu guarda-chuva.

Eram duas horas da tarde quando o tempo finalmente se acalmou. Apesar da forte chuva o chão de terra ainda se mantinha completamente seco e a poeira continuava a brincar de me empanar. A lua logo haveria de aparecer no céu. Como combinado, aos primeiros sinais do entardecer começaríamos a buscar uma área segura para montarmos acampamento. Glaura ficou de fora da meta do dia.

Um mato sem cupim daqui, outra braquearia dali, um casarão colonial assustador com um cavaleiro que corria por seus jardins ignorando os nossos chamados, aos poucos fomos ficando sem opção para pernoitar tranquilamente. Quando a noite bateu seu sino avisando que já estava se colocando em cena, Marcell e eu cruzávamos o distrito de Soares. O primeiro sinal de salvação apareceu. A nossa esquerda, bem em frente ao um bar localizado na única avenida do vilarejo havia um campo de futebol muito bem cuidado e todo cercado por alambrados. Ali era, sem dúvidas, um ponto bom para uma noite de sono tranquilo. No boteco ao lado brotou uma das surpresas mais agradáveis desta viagem. Encontrava-se estacionada próximo a mesa de bilhar – e abarrotada de tralhas –  a bicicleta do cicloviajante, Apgaua, nome que só deixou de ser Gael na minha cabeça três dias após o nosso encontro. Apgaua estava vindo de Vitória no Espiríto Santo e tinha como objetivo pedalar até a região costeira do pacífico. –  “Gael”, você que está vindo de Glaura, dá pra gente chegar lá ainda hoje antes de escurecer? – perguntamos. Apgaua: – Não, e eu consigo chegar a Acuruí?  – Devolvemos a resposta: – Também não. Melhor encontrarmos o responsável por este campo de futebol para ver se a gente consegue montar acampamento nele esta noite. Descobrimos que o vice presidente da associação desportiva de Soares, homem responsável pela conservação do campo e por autorizar a nossa entrada no gramado, era Deguinho, marido de Marlene, a dona do bar onde encontramos Apgaua. Deguinho não estava em Soares, havia saído para prestar um serviço na região e deveria retornar dentro de algumas horas. Três ovos frescos, um macarrão instantâneo e três garrafas de cerveja, esta foi a nossa feira no boteco enquanto aguardávamos o marido de Marlene. As comidas ficaram obviamente para o jantar e a cerveja não deu nem para completar dez minutos de prosa boa. Deguinho retornou a Soares trazendo a ótima notícia de que poderíamos utilizar o vestiário da associação para passar a noite. Banho quente, área coberta e segura, um hotel cinco estrelas aos olhos de quem viaja de maneira simples e distante do luxo. O jantar foi servido com ovos mexidos e macarrão instantâneo, os colchonetes estendidos sobre o chão e o alambrado do campo se transformou em um varal improvisado. Ficamos por alguns minutos sentados a beira do campo aproveitando a brisa fresca da noite para falarmos das histórias que nos fizeram chegar até ali. Durante a madrugada – nocauteado de sono – acordei alegre ao ouvir o barulho da chuva caindo lá fora. Marcell e Apgaua também despertaram ao som de um trovão. – Que maravilha esta chuva, ein pessoal? E veio a resposta: – Puta que pariu, a roupa seca no varal.


ACESSE OS OUTROS CAPÍTULOS DESTA VIAGEM
INTRODUÇÃO / PARTE 1

 


outubro 19, 2016 0 comentário
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O INIMIGO QUE NÃO EXISTIU

Da partida ao primeiro acampamento

O relógio marcava quase uma hora da manhã quando consegui me deitar. Estava bastante ansioso e inquieto com a forte onda de calor que tomara conta da cidade naquela noite. Na cama o suor que escorria por entre o pescoço molhava o travesseiro e parte das minhas roupas. Estava impossível relaxar, não parava um minuto sequer quieto. O tempo andava acelerado e o pensamento de que eu precisava dormir logo afastava ainda mais o sono. Não sei como e quando, mas em algum momento da madrugada eu finalmente apaguei.

As três horas e trinta minutos o despertador tocou. Não me lembro muito bem mas talvez eu tenha até acordado um pouco antes. Abri os olhos sem um pingo de sono. Estava agitado e cansado. Enquanto ia ao banheiro para tomar uma ducha, Débora preparava um delicioso café da manhã na cozinha. No cardápio tínhamos suco natural de laranja, biscoitos, barras de cereal, pão na chapa com manteiga, ovos mexidos e pizza amanhecida. Embora estivesse diante de um verdadeiro banquete de rei, naquela momento mal consegui tocar na comida. A tensão que roubara meu apetite também me presenteou com uma dor muita incômoda na base do pescoço. Nada grave, provavelmente uma contração muscular mais acentuada em resposta a ansiedade do momento.

As cinco horas da manhã Marcell e Rachel chegaram ao apartamento. Tentávamos acelerar ao máximo os trabalhos de montagem pois queríamos estar nas ruas antes que os primeiros raios de sol revelassem a loucura da cidade. Ainda não havia testado a dirigibilidade da bicicleta equipada quando então decidi dar uma voltinha pela garagem do prédio. Estava preocupado com a resistência dos bagageiros e a posição mais elevada que se encontravam os alforjes dianteiros. O centro de gravidade havia se alterado e consequentemente a minha noção equilíbrio. Apesar do amadorismo em tal transporte de cargas me senti bastante confiante para seguir caminho até Paraty. Canarinha já havia provado em outras viagem que é uma ótima companheira de estrada.

Na rua o trânsito crescente de carros e pedestres encerrava de vez a vontade de partir ainda pela madrugada. Anteriormente, durante algumas pesquisas que fiz sobre os caminhos da Estrada Real acabei identificando que o ponto mais crítico da viagem em relação a movimentação de veículos automotores se dava justamente no perímetro urbano de Belo Horizonte. Não tenho problemas em pedalar ao lado de carros e ônibus, mas sempre me sinto bastante desconfortável quando este encontro acontece dentro da cidade. Há sempre um motorista maluco circulando por aí.

Eram quase sete horas da manhã quando Marcell conseguiu  fixar seu ultimo alforje. Eu estava impaciente e queria sair logo dali. Nunca me dei bem com esperas, aliás, esta má administração psicológica me rendeu uma síndrome que carrego desde a infância. A síndrome do intestino irritável, como é comumentente conhecida, é uma alteração psicossomática que ataca o intestino em situações de estresse. Apesar de não ter cura ela não nos traz nenhum risco a saúde, apenas nos causa um desconforto abdominal que pode resultar em prisão de ventre ou numa “bambeira” do intestino. As vezes nem acontece nada, só ficamos na desconfiança. Em casos mais extremos esta síndrome pode ser sim um problema na vida das pessoas, ao ponto de impedi-las de fazer atividades banais do dia a dia como enfrentar filas, aguardar um ônibus, ir ao supermercado e até ir trabalhar. A boa notícia é que tudo isso pode ser controlado com uma boa alimentação e atividade física, aliás, comer bem e correr já está virando clichê médico.

Finalmente estávamos prontos para sair. Da calçada do prédio subi na bicicleta, fiz uma ultima conferência rápida nos equipamentos, zerei o marcador de quilometragem e vesti o capacete. Aflita ao meu lado, Débora aguardava nossa saída. Um abraço, um beijo e uma frase ao seus ouvidos –  Depois do BH Shopping estamos em Paraty. Era assim que eu enxergava esta etapa da viagem. O BH Shopping marcava a nossa saída da rodovia BR 356 e a nossa inserção em estradas mais tranquilas.  Uma vez longe dos carros em alta velocidade nossas atividades se resumiram em tarefas bem básicas como manter a bicicleta ajustada, alimentar-se bem, proteger-se do sol, beber bastante água e claro, ter o cuidado de não perder nenhum detalhe desta experiência maravilhosa que estávamos a viver.

O dia amanhecera frio em Belo Horizonte, nem dava para acreditar que poucas horas atrás uma forte onda de calor quase havia tirado o meu sono. O céu estava azul, nem um pingo de nuvens ou intenção de formá-las. Os fios de cabelo espetados sobre os braços logo foram se acomodando com a presença do sol que entrava por entre as copas das árvores e os prédios da cidade. Na rua íamos somando a cada esquina um novo olhar de espanto e curiosidade.

A caminho de Rio Acima – primeira cidade de pernoite do roteiro –  fizemos três paradas breves para alongamento e hidratação. Os primeiros dias em qualquer viagem de bicicleta são bastante importantes para ditar o ritmo dos dias subsequentes. A ansiedade e a tensão pré-viagem podem confundir os sentidos de nosso corpo e criar condições fantasiosas de dor e desconforto.

Nosso primeiro alongamento foi um pouco antes do trevo que marcava a saída da BR 356. Eu ainda não estava relaxado e sentia uma dor muito incômoda na base do pescoço. Sentia também sede, bastante. A boca seca era mais um sinal de que o corpo estava tenso, ansioso. Cinco minutos foi o tempo necessário para trazer a calma de volta e espantar o estresse.

A segunda e a terceira parada se deram na rodovia de Nova Lima e no pequeno trevo de Honório Bicalho, respectivamente. Ao parar pela segunda vez e feliz por ter deixado Belo Horizonte para trás, retirei o celular que estava na bolsa de guidão e sem nenhum enfeitamento enviei uma breve mensagem a Débora. – Já passamos o BH Shopping , logo mais estaremos em Paraty.

Em Honório Bicalho ficamos perdidos pela primeira vez na viagem, isto porque o distrito é minúsculo e muito bem sinalizado. Errar caminhos em lugares onde teoricamente não se deveria cometer equívocos era uma das poucas coisas que me irritava na expedição. Ao todo andamos mais de quinhentos e cinquenta quilômetros por estradas de terra, sempre guiados por um manual impresso que muitas vezes tinha como referência de manobra objetos como cercas e mata burros, porém foram as cidades os nossos piores inimigos logísticos. Perdíamos tempos preciosos com erros tolos. Na saída do vilarejo encontramos o primeiro totem oficial da Estrada Real. Estava instalado no jardim frontal de uma casa simples, sem muros, grades e muito bem preservada. Na parede externa, logo acima da janela onde provavelmente alguém se debruçava nos finais de tarde para ver o movimento da rua, havia uma placa com oferta tentadora: Vende-se chup-chup. Em algumas regiões do Brasil o  chup-chup é também conhecido por geladinho.  A iguaria simples é feita com refresco congelado armazenado em saquinhos plásticos destes que usamos para empacotar amendoim torrado em época de festa junina. Nosso almoço estava a menos de doze quilômetros dali e não era hora para pensar em sobremesas.

Um pouco antes do meio dia chegamos a cidade de Rio Acima. Na rua parávamos aleatoriamente os moradores da cidade buscando referências por bons restaurantes. Ao dizer bom estou me referindo ao  lugar onde serve-se comida à vontade por preço de pechincha. Trinta minutos mais tarde fomos atrás do campeão de indicações. As instruções para chegar ao local eram bastante simples, do tipo desce esta rua, vire a direita no bar do fulano e depois vai reto até o final. Nos perdemos mais uma vez.

O restaurante que nos foi indicado era de fato muito bom. Lugar limpo, arejado, servia uma refeição bem caprichada por um preço camarada. A comida era suficiente para saciar a fome do almoço e ainda calar o ronco do estômago na hora do jantar. A refeição veio acompanhada de uma jarra de água geladíssima, difícil de ser recusada. Me lembro que estava com tanta sede que acabei bebendo uns três copos cheios de água antes de olhar para a cara do Marcell que já sabia aquela água gelada iria tirar o meu apetite. Da metade do prato para frente eu comia de raiva. A dor no pescoço voltou a me atormentar após o almoço. Acredito que parte do incômodo surgiu com a inclinação que fiz durante a refeição buscando diminuir a distância entre o prato e a minha boca.

De volta as ruas saímos em busca de um mercado para comprar algumas garrafas de água. Sabíamos que as próximas horas seriam de pedaladas por estradas de terra onde até mesmo a presença de propriedades rurais eram escassas. Dentro da cidade ainda nos perdemos por mais duas vezes, agora por informações equivocadas dos moradores. Tempos depois fui descobrir, ao acompanhar uma amiga pela região, que é comum a confusão na cidade em relação a Estrada Real. O mesmo morro que me fizeram subir por duas vezes de barriga cheia foi o mesmo que ela também subiu equivocadamente de carro. Daquele momento em diante eu estabeleci uma regra de não tomar nenhuma direção duvidosa sem ao menos consultar três pessoas distintas. Nunca funcionou de fato como regra.

Alcançar a cidade de Acuruí não era nosso objetivo naquele momento, tão pouco se hospedar em Rio Acima. A idéia era montar acampamento em algum lugar entre estes municípios. O trecho que se seguia era marcado por um terreno bastante acidentado e íncrime. O sol, aos poucos, ia descendo pelo céu. Tinhamos pressa, pois logo a lua daria suas caras.

Por volta das quatro horas da tarde começamos a procurar um lugar para acampar. A dor no pescoço havia retornado e o cansaço acumulado começara a minar minhas reservas energéticas de forma assustadoramente rápida. Eu buscava, incansavelmente, por um sinal de queda d’água ou curso de rio na mata lateral. Precisava de água, muita água. O suor oleoso do corpo combinado com a poeira seca da estrada de terra já estavam me deixando com cara de tijolo, se é que existe esta comparação.

É comum aproveitarmos as descidas para ganhar velocidade e descansar um pouco as pernas, porém desta vez eu acabei descendo a serra bem devagar. O objetivo era manter os ouvidos atentos buscando encontrar qualquer ruido que nos apontasse para um curso de água, rio ou cachoeira. Não sei explicar muito bem os motivos que me levaram a percorrer aquele trecho lentamente, mas o fato é que esta escolha instintiva preparava uma bela surpresa pela frente.

Próximo ao final da descida notei que ao meu lado direito a mata encontrava-se um pouco mais aberta que o habitual, talvez uma trilha aberta pelo homem. Estacionei a minha bicicleta ao lado de uma árvore e pedi para que Marcell a vigiasse enquanto eu verificava se aquela entrada. Enquanto caminhava entre a vegetação parcialmente fechada percebi que o som que eu julgava ser das folhas das árvores tocadas pelo vento era na verdade o barulho de águas correntes. Apressei os meus passos até que a mata se abriu de vez e eu pude avistar um rio de águas cristalinas e margens formadas por pedrinhas brancas ovaladas. A felicidade explodiu dentro de mim. Voltei as pressas para a estrada e sem explicar muito o que havia visto convenci Marcell de que aquele era o lugar ideal para pernoitarmos.

Eu estava eufórico, não sabia se tomava banho de rio, se montava acampamento, preparava comida, lavava roupa ou se ficava apenas observando a paisagem. O sol foi quem ditou as regras. Mergulhar durante a noite era uma opção inviável tanto pelos riscos de acidente quanto pela temperatura congelante da água. Todas as outras opções eram relativamente simples de serem executadas no escuro com auxílio de lanternas. Foi assim então que me joguei no rio e fiquei por lá quase trinta minutos sem fazer absolutamente nada. Lavei o corpo, a alma e acidentalmente o celular que estava no bolso da bermuda. Ao descobrir que o aparelho telefônico ainda encontrava-se comigo ainda tive tempo de assistir seu último piscar de tela antes de se apagar completamente. Fiquei chateado pois não mais conseguiria me comunicar com o pessoal de casa. Até hoje não consigo entender como ele se manteve ligado por tanto tempo debaixo d’água e só entrou em colapso no momento exato em que eu o retirei do rio. Sem saber o que fazer abri o celular e o deixei debaixo do pouco sol que ainda restava no céu.

De banho tomado fui preparar o jantar. Estávamos carregando nos alforjes uma porção de legumes frescos para os primeiros dias de viagem. Tínhamos também também arroz, feijão liofilizado, temperos, macarrão, refresco em pó e claro, muita fome. Fatiei um pouco de cenoura e mandioquinha salsa, misturei com arroz cru e alho desidratado e uma pitada de sal. Coloquei tudo em uma panela com água e deixei cozinhar em fogo baixo por uns vinte minutos. Enquanto a comida ia chegando ao ponto fui buscar minhas garrafas de água que estavam as margens do rio. Certa vez li no livro O Recado do Morro de João Guimarães Rosa o relato curioso de alguns tropeiros que resfriavam garrafas de cerveja lançando-as amarradas em cordas dentro de rios. Obviamente não era a minha intenção. As garrafas só estavam as margens do rio porque as deixamos em repouso enquanto as pastilhas de cloro terminavam o processo de purificação.

Antes de dormir e depois de ter feito as tarefas de casa de lavar a louça e escovar os dentes ainda tirei um tempo para escrever em meu diário. O sono veio e eu nem percebi.

A meia noite em ponto abri os olhos assustado sem saber qual era o motivo do espanto. Deitado com a barriga para cima passei a observar os ruídos que vinham da vegetação. Eu não sabia, mas naquele momento Marcell também estava acordado dentro de sua barraca. De repente ouço um barulho grave como se algo pesado tivesse sido colocado próximo de nós. Sutilmente estico a mão direita para alcançar meu canivete quando sou surpreendido por uma forte rajada de luz. Pensava nas bicicletas estacionadas do lado de fora sem nenhum cadeado. Munido com o canivete e lanterna em mãos fui cuidadosamente abaixando o zíper de entrada da barraca quando novamente ouvi o ruído grave. Pensei por alguns segundos como estavam dispostos as nossas coisas no acampamento e então explosivamente me joguei para fora da barraca. Marcell imediatamente fez o mesmo. Ali reunia-se a dupla mais patética de cicloviajantes já vista na história da Estrada Real. Se naquele momento o nosso inimigo não fosse os raios e trovões marcando a chegada da chuva, certamente o amigo leitor não estaria lendo este relato hoje.

Não passou por minha cabeça em nenhum momento que poderíamos pegar chuva naquele dia. Da saída de Belo Horizonte até o momento em que o sol se pôs, não havia qualquer possibilidade visível de pegarmos uma chuva. Pelo menos pudemos manter nossas bagagens secas e dormir em paz.


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INTRODUÇÃOPARTE 2

 


setembro 24, 2016 2 comentários
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Belo Horizonte, Agosto de 2013

O AMANHÃ NUNCA CHEGA
Os dias que antecederam a partida

Carlos, vou ter que sair do projeto. Meu computador não está mais conseguindo trabalhar com imagens em alta resolução. – A poucos dias da entrega de um projeto que indiretamente financiaria toda a minha viagem pela Estrada Real, Thiago, amigo e parceiro de trabalho, se viu obrigado a abandonar o seu posto.

O relógio que anteriormente já não funcionava honestamente nas suas vinte e quatro horas de repente passou a girar seus ponteiros tão rápido quanto faria as pás de um liquidificador. O tempo voava alucinadamente e carregava consigo as poucas ideias e soluções que ainda me restavam.  Eu precisa vencer os atrasos, o sono, o cansaço e vontade de desistir de tudo.

Não estava preparado para abandonar um bom projeto, perder um fiel cliente e ainda deixar uma viagem que havia planejado há meses escapar por entre os dedos de minha mão. Eu precisava de uma solução urgente e Hamilton, parceiro de outros projetos e amigo de boa safra topou entrar neste barco furado comigo. Thiago receberia a sua parte pelo que já havia feito e Hamilton assumiria o restante e seus devidos honorários.

Neste momento entrou em cena uma senhorita muito simpática pela qual me enrosquei nos amores desde os tempos da Arca de Nóe. Débora passou a integrar o time. Todos os dias após o trabalho ela vinha até minha casa para ajudar nos preparativos da viagem. Pobre coitada, nem mesmo o mais fraco dos jogadores de futebol de um time de várzea ficaria tão na reserva quanto eu a deixei. Apesar da minha indelicada falta de atenção foi ótimo estar na companhia daquela adorável mocinha. Durante as madrugadas entre minhas brigas com o sono e algumas imagens finalizadas ainda tinha tempo para me divertir, observando sob risadas, aquela criaturinha dobrando e desdobrando sobre a cama na simples tentativa de permanecer acordada enquanto eu, facilmente trocava a noite pelo dia.

Os trabalhos foram retomados. Hamilton ainda precisava entender como tudo estava sendo organizado e a falta natural de entendimento me deixava um pouco preocupado. Não demorou muito para que as madrugadas não fossem mais de trabalhos solitários. Do outro lado da conexão Hamilton se dedicava incansavelmente a montagem do projeto e Marcell, amigo, biólogo e companheiro de viagem não ficou de fora do pagode. Todo dia por volta das 10 horas da noite ele ligava o seu computador e o disponibilizava para acesso remoto. Da minha casa eu operava, enviava arquivos e produzia imagens que só seriam vistas no dia seguinte.

Não pedalava há mais de um mês e já havia trocado as boas refeições por pizzas vagabundas e biscoitos recheados. Meus banhos eram de invejar qualquer ativista ambiental. Seguia rigorosamente os mandamentos da vida sedentária e da morte precoce. Do outro lado Hamilton também assinava seu atestado de óbito e Marcell provavelmente já havia xingado seis gerações da minha família por conta dos atrasos.

Por falha minha a viagem já havia sido remarcada algumas vezes e o roteiro ainda estava um pouco distante de ser fechado. Minha preocupação se tornou visível quando próximo a nova data de partida notamos que ainda tínhamos em mãos quatro bagageiros que não serviam em nenhuma de nossas bicicletas. Eu sabia que sem bagageiro e sem projeto estruturado esta viagem correria o sério risco de ser adiada para o ano seguinte. Minhas férias estavam programadas e a época de chuva estava quase iniciando. Dias mais tarde Hamilton conseguiu finalizar sua parte na produção e finalmente estabelecemos a data para o início da viagem; domingo.

Na quinta-feira Marcell e eu fomos até uma pequena serralheria que havia no bairro. No local encontramos muita ferragem jogada no chão, pouco espaço de trabalho e um ambiente mal iluminado. Fomos atendidos por um senhor de poucas palavras, cabelo grisalho, rosto sofrido, barriga bem servida e bastante disposto a ajudar. Na época eu ainda nem imaginava que viria a me formar tecnicamente como soldador e portanto entendia muito pouco dos processos de soldagem. Acreditava que todo o trabalho naquela oficina não levaria mais do que uma hora para ser finalizado. De fato a soldagem em si é bem rápida, o que pode tomar tempo são as etapas de preparação de material. Foi com esta inocência que por volta das oitos horas da noite e depois de permanecer quase cinco horas dentro da oficina, Marcell e eu, a beira de um colapso nervoso, finalmente conseguimos encaixar os bagageiros nas bicicletas. Na sexta-feira pela manhã ainda tivemos que voltar ao serralheiro para fazer alguns pequenos ajustes na estrutura. Durante a tarde Débora e eu quebrávamos a cabeça em casa esparramando sobre a cama itens que seriam levados na viagem como estojo de primeiro socorros, higiene pessoal, ferramentas, barraca, fogareiro, saco de dormir dentre outros. Aos poucos fomos catalogando e separando um a um.

No sábado pela manhã enquanto aguardávamos a chegada de Marcell e sua namorada Rachel, Débora e eu decidimos ir ao mercado para comprar alguns itens que estavam faltando. Nossa tarde foi dedicada exclusivamente ao trabalho de montar as bicicletas.

Débora, cadê as baterias? Marcell, você acha interessante levarmos isto? Nossa, já está ficando escuro lá fora. Apesar de todos os esforços de uma equipe bem concentrada e dedicada as previsões que outrora apontavam para uma logística falha agora se tornavam reais. Por todos os cantos da casa era possível encontrar objetos esparramados sobre o chão. Talvez a única diferença visual naquele momento entre o nosso ambiente de trabalho e o de um vendedor de Marrakech era a sua posição geográfica no planeta. O dia estava muito próximo de acabar e eu estava faminto e cansado. Teoricamente a viageminiciaria dentro de algumas horas e era fácil resolver aquela confusão. Juntaríamos tudo aleatoriamente e jogaríamos dentro dos alforjes. Apesar de ser tentadora a opção de se libertar dos planejamentos massantes e intermináveis esta escolha poderia nos trazer muitas dores de cabeça lá na frente.

Não vamos viajar amanhã. Não podemos sair com as coisas arrumadas de qualquer jeito. Marcell concordou imediatamente, talvez já estivesse enxergando esta possibilidade enquanto eu ainda tinha esperanças de íamos conseguir finalizar a montagem ainda no sábado. Esta decisão trouxe um alívio imediato para equipe e um bônus bem agradável. Tínhamos agora um dia completo pela frente para colocar tudo no eixo de forma pensada e segura. O dia extra rendeu ainda a fabricação de dois pequenos travesseiros feitos a partir de uma espuma velha que estava jogada atrás do sofá. Ideia fantástica que certamente nos polpou de uma consulta ortopédica pós Estrada Real. Era madrugada quando o casal de amigos se despediu e fomos dormir.

Tudo que eu não queria era sair para viagem em plena segunda-feira estando em uma capital.  Pensar no trânsito que me aguardava nas ruas me deixava bastante desconfortável. Embora eu já tivesse outros experiências com viagens mais curtas, desta vez eu estaria carregando uma quantidade de bagagem significativamente maior. Na internet os conselhos eram para que fosse feito um teste primeiramente com a bicicleta montada antes de sair definitivamente para viagem. Ótima dica se não fosse pelo fato de que quase 100% das pessoas que aconselham fazer o teste nunca o fizeram de fato. É bem compreensível o motivo pelo qual as pessoas desistem desta tarefa uma vez que não é nada legal equipar uma bicicleta inteira simplesmente para dar uma voltinha no quarteirão. Se for cair, vai cair de qualquer jeito, a estrada é o caminho e a escola.


ACESSE O PRÓXIMO CAPÍTULO DESTA VIAGEM
PARTE 1

 


julho 26, 2016 0 comentário
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