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viagem de bicicleta

Formado à aproximadamente dois anos, estava morando em São Paulo, dividindo apartamento com um grande amigo meu, trabalhando em uma clínica no Brás e vivendo aquela rotina que todo paulistano, ou quem mora na cidade de São Paulo, conhece: a que faz você se sentir peça de uma engrenagem e que será facilmente substituído ao “apresentar defeito”.  Soma-se a isso um namoro à distância indo aos trancos e barrancos, que para continuar existindo, dependeria de uma mudança minha. Mudança essa de comportamento e de residência. No caso, mudar-me de São Paulo para Vitória, capital do Espírito Santo.

Essa é a situação a qual me encontrava em Dezembro de 2014, data em que resolvi que ia deixar a capital paulista para viver na Ilha Capixaba.

Conversei com André, amigo com o qual eu dividia o aluguel do apartamento e resolvemos que não haveria maiores problemas em minha saída. O emprego no Brás eu já havia deixado meses atrás e estava prestando serviço em uma clínica em Mogi Das Cruzes. Iria continuar em São Paulo até as festas de fim de ano e depois sair definitivamente da selva de pedras. Porém, em certa segunda-feira ainda no início do mês de Dezembro fui para Mogi trabalhar e recebi a notícia de que havia sido “transferido” para outra clínica, essa em Ferraz de Vasconcelos. Era uma clínica menor e que me renderia menos. Achei que era melhor adiantar meus planos de deixar de vez São Paulo.

Naquela semana fiquei adiantando algumas coisas em casa, fazendo contas e planejando o futuro breve. Rayana, minha namorada, viria para seu curso e no fim de semana iríamos para Sorocaba, onde o irmão dela iria noivar-se. Minha mãe também estaria em São Paulo naquela semana e ia conosco à Sorocaba.

Na festa do noivado, conversando com minha mãe e Rayana, decidi que iria embora de São Paulo na próxima semana. Iria na terça-feira e de bicicleta. Assim, de bate pronto. Eu não possuía equipamentos para uma cicloviagem, porém tinha uma vontade enorme dentro de mim. Já havia feito uma aventura dessas percorrendo o caminho entre Alfenas/MG e Aparecida/SP em 2009, e desde então, sempre novas cicloviagens não saíram do papel. Dessa vez não poderia escapar. Havia saído do emprego, planejado me mudar de cidade, nada poderia me impedir.

De volta a São Paulo, ainda no Domingo, comecei a organizar as coisas para a viagem. Minha bicicleta era simples, mas com certeza agüentaria todo o trajeto com segurança. O grande problema era que não estava equipada com bagageiro. Esse detalhe posteriormente se mostraria fundamental para o desenvolvimento de uma viagem agradável. Mas em São Paulo, com apenas a segunda-feira para planejar e sem chance de desistir ou de postergar a viagem, levar apenas uma mochila com peças de roupas, água e alguns petiscos, parecia-me uma ideia fantástica. Tracei a rota, marquei as paradas onde iria pernoitar, coloquei todo o conteúdo da mochila para testar o peso e simulei também uma troca da câmara de ar, caso o pneu furasse. Este teste era fundamental, pois nunca havia removido um pneu. A vida toda andando de bicicleta e nunca havia tido problema com furos. Pareceu-me e é de fato bem simples. Deixei tudo bem no jeito para o dia seguinte sair cedo: às 06h00min horas já pretendia estar pedalando rumo à Alfenas/MG.

Antes de dormir confirmei com minha madrinha Maria Lucia, que mora em Campinas/SP, a disponibilidade de eu passar a noite lá. Falei também com Analice, amiga minha de infância e da faculdade, que mora em Espírito Santo do Pinhal/SP, que seria a segunda parada da viagem. Ela confirmou. Poderia dormir por lá, porém ela estaria em Alfenas em seu curso de pós-graduação e deixaria a chave da casa com a secretária em seu consultório para que eu pudesse pegar. Em Poços de Caldas/MG, ficaria em uma república de universitários. Meu contato era Bruno, amigo de meu irmão. Eu não o conhecia, mas ele foi bem solícito e disponibilizou seu lar para eu passar a terceira noite da viagem. Agora sim tudo bem resolvido e eu poderia deitar em paz e descansar para o dia seguinte.

Na manhã de terça-feira, acordei no horário planejado, por volta das 05h00min horas. A meta era sair o mais cedo possível, pois ia passar por um trecho da Marginal Tietê para poder pegar a Rodovia dos Bandeirantes com sentido à Campinas/SP, e queria fazê-lo enquanto o tráfego estivesse o menos intenso possível. Tomei um belo café da manhã, reforçado mesmo, bem diferente do que eu costumeiramente como, chequei tudo e parti.

Logo na saída um resquício de um chuvisqueiro qualquer e no viaduto da Pompéia, um arco-íris indicava que havia sido dada a largada! Um pouco mais a frente vi uma das imagens mais marcantes da viagem: o nascer do sol sobre uma ponte que atravessa o Rio Tietê. Uma imagem fantástica de um Rio tão belo que o homem teve a infelicidade de quase destruí-lo completamente na parte em que atravessa a capital paulista. Certamente é contemplada por poucos, como que se a Natureza fizesse isso em resposta ao descaso do homem com o que lhe é ofertado.

Continuando a viagem, havia pedalado uns 15 quilômetros quando o pneu traseiro furou pela primeira vez. Muito precocemente eu achei. Não queria desanimar e fui logo dando um jeito. Peguei o kit de remendo e mãos à obra. Removi a roda, retirei a câmara de ar e enchi-a para observar onde era o vazamento. Eram dois furos, porém um deles eu não conseguia remendar. Andei um pouco pelo acostamento até encontrar uma entrada que dava em um bairro já periférico da cidade de São Paulo. Andei um bocado à pé, cerca de uns 2 km, até encontrar uma bicicletaria.  Lá aproveitei e comprei um retrovisor, além de trocar aquela câmara furada por uma nova e levar uma câmara reserva para caso houvesse outro incidente semelhante. Amigos já haviam me alertado sobre os acostamentos dessas rodovias de maior volume de caminhões. Eles ficam cheios de araminhos e objetos pérfuro-cortantes que vão se soltando desses veículos maiores e acabam por furar os pneus da bicicleta.

Percorri em um ritmo relativamente bom até exatamente a frente do parque de diversões Hopi Hari. Lá novamente tive problemas com o pneu. Dessa vez troquei logo a câmara de ar furada pela nova, enchi-a com a bombinha que levava comigo e fui até Campinas. Essa minha bombinha de mão não era lá essas coisas, portanto o pneu não estava numa calibragem legal e eu custava pedalar, pois a bicicleta parecia bem mais pesada do que ela realmente é. Na entrada da cidade a primeira coisa que fiz foi procurar um posto de gasolina e encher adequadamente o pneu em um compressor de ar decente para terminar de chegar ao apartamento de minha tia. Guardei a bicicleta juntamente com as dos outros moradores do prédio e subi. Lá fui logo tratando de colocar a roupa que estava pedalando na máquina e fui para o banho. Uma das sensações mais incríveis dessa vida é essa: depois de um dia todo de cicloviagem, perrengues, pneus furados, você chegar ao seu destino, tomar um belo banho e ter onde descansar o corpo.  Minha madrinha chegou do trabalho junto com seu marido. Comemos, conversamos bastante e aproveitamos para matarmos a saudade. Antes de deitar, resolvi deixar em Campinas algumas roupas que estavam fazendo muito volume na mochila e eu certamente não precisaria delas. Essa alteração no peso da mochila foi muito válida, porque durante todo o dia pedalando a sensação que dá é a de que ela vai ficando mais pesada a cada quilômetro, e quanto mais leve ela estivesse, mais prazerosa seria a viagem.

Atrasei-me um pouco para sair de Campinas. Na verdade estava contando com um bom rendimento durante as pedaladas e isso se confirmou. Atravessei toda a cidade de Campinas e peguei a estrada sentido Mogi Guaçu/SP. O tempo estava firme, céu limpo e muito sol. Almocei em Mogi Guaçu e dali até Espírito Santo do Pinhal/SP seriam mais ou menos 40 km. Após o almoço, o tempo começou a dar uma guinada incrível. Uma tempestade se formava e eu já tratei logo de deixar a capa de chuva que tinha ganhado de tio David, esposo de minha madrinha Maria Lúcia, no jeito para vesti-la. Pedalar na tempestade foi uma mistura de prazer, apreensão, e sensação de estar desafiando a natureza, obviamente, respeitando a sua magnitude. Na cidade, fui procurar o consultório de Ranieri e Analice, o casal de amigos que me emprestara a chave de sua residência para que eu passasse a noite lá. Conheci a secretária deles, peguei a chave com ela e fui conhecer a casa que ficava nos fundos do consultório. Deixei minhas coisas no chão da sala mesmo e realizei o mesmo ritual da noite anterior na casa de Tia Maria Lúcia. Eles moravam bem próximo da praça da igreja Matriz, e fui até lá para comer um lanche no trailer que Analice tinha me sugerido. Era um trailer bem simples, como os de Alfenas mesmo: mesinhas de plástico, tubos de maionese na mesa e um lanche bem saboroso. Valeu a indicação! Comprei umas coisinhas para passar a noite, algo para o café da manhã e uma garrafa de vinho para retribuir a generosidade do casal para comigo. Voltei para casa, abri uma latinha de cerveja e comecei a assistir televisão. Parece brincadeira, mas cochilei antes mesmo de terminar de beber essa primeira lata.

O destino agora era Poços de Caldas/MG. Era o dia em que menos pedalaria em quilometragem, porém era o que mais ganharia em elevação. Faria o caminho por Andradas/MG e subiria até Poços. O pneu acabou furando novamente no início da subida da Serra e dessa vez eu já estava com a câmara reserva furada na mochila. Tentei remendar a câmara que estava usando, mas havia um furo que eu não conseguia achar. Eu enchia o pneu e ele não vazava, porém quando subia na bicicleta e pedalava ele começava a murchar. Fui assim até Poços de Caldas. Lá, novamente começou a chover. Eu estava em um bairro do subúrbio e procurava um lugar para almoçar. Acabei achando um self-service à vontade bem barato. Comida bem simples. Comi, bebi um refrigerante de 1 litro e fiquei muitíssimo satisfeito, ainda mais quando a dona do estabelecimento cobrou menos de mim, pois achou que eu havia comido muito pouco. Coisas da vida. Agora a missão era achar uma bicicletaria para reparar minhas câmaras de ar, ambas furadas.

Descendo a rua do restaurante onde almocei havia uma bicicletaria. Indaguei o proprietário se havia possibilidade dele fazer os reparos. Disse-me ele que o funcionário responsável pela manutenção estava de folga naquele dia e que ele não poderia me ajudar. Indicou-me outra bicicletaria mais pro interior do bairro. Fui até o local indicado, mas estava fechado. Decepcionante. Uma bicicletaria fechada, outra que não prestava o serviço e eu com os pneus furados. Subindo o morro da primeira bicicletaria, dois borracheiros chamaram-me e quiseram saber o que se passava. Falei-lhes sobre o problema do pneu furado e que necessitava remendá-lo, porém o dono da bicicletaria não fazia esse serviço. Eles de imediato se colocaram a disposição para me ajudar. Repararam a câmara que estava na bicicleta e a que trazia na mochila também. Paguei-lhes, agradeci e parti sob a forte chuva que caía em Poços de Caldas. Atravessei toda a cidade até encontrar o endereço da República dos universitários, onde Bruno morava. Receberam-me muito bem e deixaram-me à vontade. Coloquei minhas coisas na sala, pois dormiria ali. Eles foram para uma festa da faculdade e eu atrás de comida. Dei uma volta pela redondeza à procura de um trailer, lanchonete, ou algo semelhante. Não encontrei nada que me agradasse, mas no passeio já fui conhecendo o caminho pelo qual sairia da cidade na manhã seguinte. Eles moravam bem próximos à saída de Poços que eu pegaria para ir pra Alfenas. Pedi um lanche pelo telefone mesmo, comi e logo que deitei, apaguei. Acordei somente com a chegada do pessoal que estava na festa. Eles estavam bem alterados e falavam muito alto. Fiquei um tempo razoável até adormecer novamente.

Durante toda a viagem estava mantendo contato com algumas pessoas mais próximas. Uma dessas pessoas era Carlos Eduardo, o Du. Du é um grande amigo. Foi juntos que fizemos uma cicloviagem de Alfenas/MG até Aparecida/SP. Era nossa primeira cicloviagem e foi fantasticamente improvisada. Desde lá nunca mais havíamos pedalado juntos. Os rumos que a vida tomou, trabalho, e tudo o mais não nos deram essa oportunidade. Dessa vez ele acabara de chegar de uma cicloviagem que fez até Montevidéu, capital do Uruguai, e estava descansando em Alfenas. Fomos combinando durante esses três dias um possível encontro no meio do caminho entre Alfenas e Poços.

Amanheceu o quarto dia da viagem. Vesti minha roupa, ajeitei as coisas na mochila, fiz os últimos contatos com Du sobre nosso encontro e parti. Logo na saída de Poços de Caldas, sobe-se a serra de São Domingos, porém antes de chegar ao final da subida, o lanche da noite passada me custou uma “parada de emergência”. Já aliviado, continuei a subida. Uma das paisagens mais impressionantes da viagem estava ali. Um horizonte de montanhas e cores que deixa-nos de queixo caído. Os próximos quilômetros foram de descida e alta velocidade. Nessa hora a adrenalina dá o toque especial e realça a sensação de liberdade que durante toda a cicloviagem já é pulsante. Decidi que não almoçaria e apenas faria um lanche breve para ganhar tempo. Fiz isso em um posto de gasolina após passar a cidade de Campestre. Já chegando próximo ao trevo de Serrania, finalmente encontrei Du, vindo do lado oposto da pista.

Paramos ali por um tempo. Conversa vai, conversa vem, saímos rumo à Alfenas. Antes de chegar em Serrania, paramos em uma venda de beira de estrada para tomar uma garapa. Sentamos para esperar o caldo de cana e uma cena bem curiosa aconteceu ali: um pneu de caminhão desceu a mil pelo acostamento da rodovia. Situação digna de desenho animado! Depois fui saber que é uma coisa que acontece até com alguma certa freqüência, mas até hoje foi a única vez que vi.

Em Serrania decidimos terminar o trajeto até Alfenas pela estrada de terra que ligam os dois municípios. Já estava bem cansado nesse final de viagem. A impressão que eu tinha era a de que meu corpo havia se programado exatamente para aqueles quatro dias. Aqueles 392 quilômetros. A mochila já incomodava demais. Sempre que parávamos para uma hidratação, um descanso, e eu tinha a oportunidade de ficar sem a mochila, sentia um alívio inacreditável. Porém, ali, prestes a chegar à Alfenas, sentia que tudo havia valido a pena.

Enfim chegamos. Juntos, eu e Du, fomos pedalando até uma lanchonete tomar um açaí. Brindar ali mais uma cicloviagem concluída e também nossa amizade. Muito do que utilizei na viagem tem embasamento nas dicas que Du me passou, fruto da experiência de suas cicloviagens anteriores. Sou bastante grato a ele por isso.

Por vezes menosprezamos nossa capacidade, porém tudo que precisamos para conseguir algo está em nós mesmos. Pegar uma mochila, encher de roupas, água, ferramentas de bicicleta, sair pedalando de São Paulo até Alfenas pode parecer algo extraordinário ou pelo menos incomum, mas a partir do momento que acreditamos ser possível, esse feito começa a ser realizado. Eu precisava mudar. Deixar velhas certezas para trás. Ir desapegando daquilo que já não me era necessário. Continuar em frente e apenas com o que eu precisava para ser de fato feliz. E assim tudo começa: acreditando que somos capazes. Capazes de mudar. De realizar. Tenha fé em você e viva. Vai dar certo.


outubro 14, 2016 2 comentários
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O INIMIGO QUE NÃO EXISTIU

Da partida ao primeiro acampamento

O relógio marcava quase uma hora da manhã quando consegui me deitar. Estava bastante ansioso e inquieto com a forte onda de calor que tomara conta da cidade naquela noite. Na cama o suor que escorria por entre o pescoço molhava o travesseiro e parte das minhas roupas. Estava impossível relaxar, não parava um minuto sequer quieto. O tempo andava acelerado e o pensamento de que eu precisava dormir logo afastava ainda mais o sono. Não sei como e quando, mas em algum momento da madrugada eu finalmente apaguei.

As três horas e trinta minutos o despertador tocou. Não me lembro muito bem mas talvez eu tenha até acordado um pouco antes. Abri os olhos sem um pingo de sono. Estava agitado e cansado. Enquanto ia ao banheiro para tomar uma ducha, Débora preparava um delicioso café da manhã na cozinha. No cardápio tínhamos suco natural de laranja, biscoitos, barras de cereal, pão na chapa com manteiga, ovos mexidos e pizza amanhecida. Embora estivesse diante de um verdadeiro banquete de rei, naquela momento mal consegui tocar na comida. A tensão que roubara meu apetite também me presenteou com uma dor muita incômoda na base do pescoço. Nada grave, provavelmente uma contração muscular mais acentuada em resposta a ansiedade do momento.

As cinco horas da manhã Marcell e Rachel chegaram ao apartamento. Tentávamos acelerar ao máximo os trabalhos de montagem pois queríamos estar nas ruas antes que os primeiros raios de sol revelassem a loucura da cidade. Ainda não havia testado a dirigibilidade da bicicleta equipada quando então decidi dar uma voltinha pela garagem do prédio. Estava preocupado com a resistência dos bagageiros e a posição mais elevada que se encontravam os alforjes dianteiros. O centro de gravidade havia se alterado e consequentemente a minha noção equilíbrio. Apesar do amadorismo em tal transporte de cargas me senti bastante confiante para seguir caminho até Paraty. Canarinha já havia provado em outras viagem que é uma ótima companheira de estrada.

Na rua o trânsito crescente de carros e pedestres encerrava de vez a vontade de partir ainda pela madrugada. Anteriormente, durante algumas pesquisas que fiz sobre os caminhos da Estrada Real acabei identificando que o ponto mais crítico da viagem em relação a movimentação de veículos automotores se dava justamente no perímetro urbano de Belo Horizonte. Não tenho problemas em pedalar ao lado de carros e ônibus, mas sempre me sinto bastante desconfortável quando este encontro acontece dentro da cidade. Há sempre um motorista maluco circulando por aí.

Eram quase sete horas da manhã quando Marcell conseguiu  fixar seu ultimo alforje. Eu estava impaciente e queria sair logo dali. Nunca me dei bem com esperas, aliás, esta má administração psicológica me rendeu uma síndrome que carrego desde a infância. A síndrome do intestino irritável, como é comumentente conhecida, é uma alteração psicossomática que ataca o intestino em situações de estresse. Apesar de não ter cura ela não nos traz nenhum risco a saúde, apenas nos causa um desconforto abdominal que pode resultar em prisão de ventre ou numa “bambeira” do intestino. As vezes nem acontece nada, só ficamos na desconfiança. Em casos mais extremos esta síndrome pode ser sim um problema na vida das pessoas, ao ponto de impedi-las de fazer atividades banais do dia a dia como enfrentar filas, aguardar um ônibus, ir ao supermercado e até ir trabalhar. A boa notícia é que tudo isso pode ser controlado com uma boa alimentação e atividade física, aliás, comer bem e correr já está virando clichê médico.

Finalmente estávamos prontos para sair. Da calçada do prédio subi na bicicleta, fiz uma ultima conferência rápida nos equipamentos, zerei o marcador de quilometragem e vesti o capacete. Aflita ao meu lado, Débora aguardava nossa saída. Um abraço, um beijo e uma frase ao seus ouvidos –  Depois do BH Shopping estamos em Paraty. Era assim que eu enxergava esta etapa da viagem. O BH Shopping marcava a nossa saída da rodovia BR 356 e a nossa inserção em estradas mais tranquilas.  Uma vez longe dos carros em alta velocidade nossas atividades se resumiram em tarefas bem básicas como manter a bicicleta ajustada, alimentar-se bem, proteger-se do sol, beber bastante água e claro, ter o cuidado de não perder nenhum detalhe desta experiência maravilhosa que estávamos a viver.

O dia amanhecera frio em Belo Horizonte, nem dava para acreditar que poucas horas atrás uma forte onda de calor quase havia tirado o meu sono. O céu estava azul, nem um pingo de nuvens ou intenção de formá-las. Os fios de cabelo espetados sobre os braços logo foram se acomodando com a presença do sol que entrava por entre as copas das árvores e os prédios da cidade. Na rua íamos somando a cada esquina um novo olhar de espanto e curiosidade.

A caminho de Rio Acima – primeira cidade de pernoite do roteiro –  fizemos três paradas breves para alongamento e hidratação. Os primeiros dias em qualquer viagem de bicicleta são bastante importantes para ditar o ritmo dos dias subsequentes. A ansiedade e a tensão pré-viagem podem confundir os sentidos de nosso corpo e criar condições fantasiosas de dor e desconforto.

Nosso primeiro alongamento foi um pouco antes do trevo que marcava a saída da BR 356. Eu ainda não estava relaxado e sentia uma dor muito incômoda na base do pescoço. Sentia também sede, bastante. A boca seca era mais um sinal de que o corpo estava tenso, ansioso. Cinco minutos foi o tempo necessário para trazer a calma de volta e espantar o estresse.

A segunda e a terceira parada se deram na rodovia de Nova Lima e no pequeno trevo de Honório Bicalho, respectivamente. Ao parar pela segunda vez e feliz por ter deixado Belo Horizonte para trás, retirei o celular que estava na bolsa de guidão e sem nenhum enfeitamento enviei uma breve mensagem a Débora. – Já passamos o BH Shopping , logo mais estaremos em Paraty.

Em Honório Bicalho ficamos perdidos pela primeira vez na viagem, isto porque o distrito é minúsculo e muito bem sinalizado. Errar caminhos em lugares onde teoricamente não se deveria cometer equívocos era uma das poucas coisas que me irritava na expedição. Ao todo andamos mais de quinhentos e cinquenta quilômetros por estradas de terra, sempre guiados por um manual impresso que muitas vezes tinha como referência de manobra objetos como cercas e mata burros, porém foram as cidades os nossos piores inimigos logísticos. Perdíamos tempos preciosos com erros tolos. Na saída do vilarejo encontramos o primeiro totem oficial da Estrada Real. Estava instalado no jardim frontal de uma casa simples, sem muros, grades e muito bem preservada. Na parede externa, logo acima da janela onde provavelmente alguém se debruçava nos finais de tarde para ver o movimento da rua, havia uma placa com oferta tentadora: Vende-se chup-chup. Em algumas regiões do Brasil o  chup-chup é também conhecido por geladinho.  A iguaria simples é feita com refresco congelado armazenado em saquinhos plásticos destes que usamos para empacotar amendoim torrado em época de festa junina. Nosso almoço estava a menos de doze quilômetros dali e não era hora para pensar em sobremesas.

Um pouco antes do meio dia chegamos a cidade de Rio Acima. Na rua parávamos aleatoriamente os moradores da cidade buscando referências por bons restaurantes. Ao dizer bom estou me referindo ao  lugar onde serve-se comida à vontade por preço de pechincha. Trinta minutos mais tarde fomos atrás do campeão de indicações. As instruções para chegar ao local eram bastante simples, do tipo desce esta rua, vire a direita no bar do fulano e depois vai reto até o final. Nos perdemos mais uma vez.

O restaurante que nos foi indicado era de fato muito bom. Lugar limpo, arejado, servia uma refeição bem caprichada por um preço camarada. A comida era suficiente para saciar a fome do almoço e ainda calar o ronco do estômago na hora do jantar. A refeição veio acompanhada de uma jarra de água geladíssima, difícil de ser recusada. Me lembro que estava com tanta sede que acabei bebendo uns três copos cheios de água antes de olhar para a cara do Marcell que já sabia aquela água gelada iria tirar o meu apetite. Da metade do prato para frente eu comia de raiva. A dor no pescoço voltou a me atormentar após o almoço. Acredito que parte do incômodo surgiu com a inclinação que fiz durante a refeição buscando diminuir a distância entre o prato e a minha boca.

De volta as ruas saímos em busca de um mercado para comprar algumas garrafas de água. Sabíamos que as próximas horas seriam de pedaladas por estradas de terra onde até mesmo a presença de propriedades rurais eram escassas. Dentro da cidade ainda nos perdemos por mais duas vezes, agora por informações equivocadas dos moradores. Tempos depois fui descobrir, ao acompanhar uma amiga pela região, que é comum a confusão na cidade em relação a Estrada Real. O mesmo morro que me fizeram subir por duas vezes de barriga cheia foi o mesmo que ela também subiu equivocadamente de carro. Daquele momento em diante eu estabeleci uma regra de não tomar nenhuma direção duvidosa sem ao menos consultar três pessoas distintas. Nunca funcionou de fato como regra.

Alcançar a cidade de Acuruí não era nosso objetivo naquele momento, tão pouco se hospedar em Rio Acima. A idéia era montar acampamento em algum lugar entre estes municípios. O trecho que se seguia era marcado por um terreno bastante acidentado e íncrime. O sol, aos poucos, ia descendo pelo céu. Tinhamos pressa, pois logo a lua daria suas caras.

Por volta das quatro horas da tarde começamos a procurar um lugar para acampar. A dor no pescoço havia retornado e o cansaço acumulado começara a minar minhas reservas energéticas de forma assustadoramente rápida. Eu buscava, incansavelmente, por um sinal de queda d’água ou curso de rio na mata lateral. Precisava de água, muita água. O suor oleoso do corpo combinado com a poeira seca da estrada de terra já estavam me deixando com cara de tijolo, se é que existe esta comparação.

É comum aproveitarmos as descidas para ganhar velocidade e descansar um pouco as pernas, porém desta vez eu acabei descendo a serra bem devagar. O objetivo era manter os ouvidos atentos buscando encontrar qualquer ruido que nos apontasse para um curso de água, rio ou cachoeira. Não sei explicar muito bem os motivos que me levaram a percorrer aquele trecho lentamente, mas o fato é que esta escolha instintiva preparava uma bela surpresa pela frente.

Próximo ao final da descida notei que ao meu lado direito a mata encontrava-se um pouco mais aberta que o habitual, talvez uma trilha aberta pelo homem. Estacionei a minha bicicleta ao lado de uma árvore e pedi para que Marcell a vigiasse enquanto eu verificava se aquela entrada. Enquanto caminhava entre a vegetação parcialmente fechada percebi que o som que eu julgava ser das folhas das árvores tocadas pelo vento era na verdade o barulho de águas correntes. Apressei os meus passos até que a mata se abriu de vez e eu pude avistar um rio de águas cristalinas e margens formadas por pedrinhas brancas ovaladas. A felicidade explodiu dentro de mim. Voltei as pressas para a estrada e sem explicar muito o que havia visto convenci Marcell de que aquele era o lugar ideal para pernoitarmos.

Eu estava eufórico, não sabia se tomava banho de rio, se montava acampamento, preparava comida, lavava roupa ou se ficava apenas observando a paisagem. O sol foi quem ditou as regras. Mergulhar durante a noite era uma opção inviável tanto pelos riscos de acidente quanto pela temperatura congelante da água. Todas as outras opções eram relativamente simples de serem executadas no escuro com auxílio de lanternas. Foi assim então que me joguei no rio e fiquei por lá quase trinta minutos sem fazer absolutamente nada. Lavei o corpo, a alma e acidentalmente o celular que estava no bolso da bermuda. Ao descobrir que o aparelho telefônico ainda encontrava-se comigo ainda tive tempo de assistir seu último piscar de tela antes de se apagar completamente. Fiquei chateado pois não mais conseguiria me comunicar com o pessoal de casa. Até hoje não consigo entender como ele se manteve ligado por tanto tempo debaixo d’água e só entrou em colapso no momento exato em que eu o retirei do rio. Sem saber o que fazer abri o celular e o deixei debaixo do pouco sol que ainda restava no céu.

De banho tomado fui preparar o jantar. Estávamos carregando nos alforjes uma porção de legumes frescos para os primeiros dias de viagem. Tínhamos também também arroz, feijão liofilizado, temperos, macarrão, refresco em pó e claro, muita fome. Fatiei um pouco de cenoura e mandioquinha salsa, misturei com arroz cru e alho desidratado e uma pitada de sal. Coloquei tudo em uma panela com água e deixei cozinhar em fogo baixo por uns vinte minutos. Enquanto a comida ia chegando ao ponto fui buscar minhas garrafas de água que estavam as margens do rio. Certa vez li no livro O Recado do Morro de João Guimarães Rosa o relato curioso de alguns tropeiros que resfriavam garrafas de cerveja lançando-as amarradas em cordas dentro de rios. Obviamente não era a minha intenção. As garrafas só estavam as margens do rio porque as deixamos em repouso enquanto as pastilhas de cloro terminavam o processo de purificação.

Antes de dormir e depois de ter feito as tarefas de casa de lavar a louça e escovar os dentes ainda tirei um tempo para escrever em meu diário. O sono veio e eu nem percebi.

A meia noite em ponto abri os olhos assustado sem saber qual era o motivo do espanto. Deitado com a barriga para cima passei a observar os ruídos que vinham da vegetação. Eu não sabia, mas naquele momento Marcell também estava acordado dentro de sua barraca. De repente ouço um barulho grave como se algo pesado tivesse sido colocado próximo de nós. Sutilmente estico a mão direita para alcançar meu canivete quando sou surpreendido por uma forte rajada de luz. Pensava nas bicicletas estacionadas do lado de fora sem nenhum cadeado. Munido com o canivete e lanterna em mãos fui cuidadosamente abaixando o zíper de entrada da barraca quando novamente ouvi o ruído grave. Pensei por alguns segundos como estavam dispostos as nossas coisas no acampamento e então explosivamente me joguei para fora da barraca. Marcell imediatamente fez o mesmo. Ali reunia-se a dupla mais patética de cicloviajantes já vista na história da Estrada Real. Se naquele momento o nosso inimigo não fosse os raios e trovões marcando a chegada da chuva, certamente o amigo leitor não estaria lendo este relato hoje.

Não passou por minha cabeça em nenhum momento que poderíamos pegar chuva naquele dia. Da saída de Belo Horizonte até o momento em que o sol se pôs, não havia qualquer possibilidade visível de pegarmos uma chuva. Pelo menos pudemos manter nossas bagagens secas e dormir em paz.


VEJA TAMBÉM OS OUTROS CAPÍTULOS DESTA VIAGEM
INTRODUÇÃOPARTE 2

 


setembro 24, 2016 2 comentários
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De todas as vezes que saí para uma viagem de bicicleta sempre tive ao meu lado um bom amigo para dividir, em tempo real, as glórias e os fracassos de um intenso dia de pedalada. Como era gostoso sentar à sombra de uma árvore robusta de folhas graúdas depois de enfrentar uma longa subida em um dia de calor fervente e se queixar, com o amigo ao lado, das dificuldades que enfrentamos até ali. Entrávamos em sintonia nas angústias até que o desconforto dava lugar a boas risadas que, por fim, nos serviam de combustível para rodar alguns quilômetros a mais até que repetindo o ritual, nos acolhíamos debaixo de uma outra árvore.

Desta vez a história seria diferente. Aqueles velhos roteiros que outrora me fizeram abraçar alguns poucos estados brasileiros agora iriam me lançar para uma viagem internacional. Estava saindo do meu país, pela primeira vez, em cima de uma bicicleta.

Eu, Canarinha e o mundo.

Viajar sozinho era uma novidade de muitos estranhamentos pra mim. Leituras aventurísticas como aquelas de Amyr Klink acabaram por abrandar um pouco os medos e as incertezas que andavam tirando o meu sono na véspera da viagem. Amyr, velejador solitário, realizou algumas das maiores façanhas de nosso tempo administrando seus medos e planejando suas viagens de maneira impecável. Diferente de suas aventuras pelos oceanos do mundo, eu sabia que uma viagem sobre uma bicicleta poderia ser levada um pouco menos a sério. Não que eu me sentisse totalmente livre a ponto de negligenciar detalhes importantes na construção do projeto, mas eu sabia que poderia ter em mãos um roteiro mais aberto. O tipo de viagem me permitia isso; não ficaria muitos quilômetros longe da civilização embora estivesse certo de que cruzaria por alguns caminhos de pouca habitação.

E foi assim, entre arrumações e afetos, que naquela manhã quente de sexta-feira do dia dezessete de outubro deixei a pequena cidade de Alfenas no Sul – MG para embarcar em uma das experiências mais belas de minha vida.

Da despedida de pouca parte da família presente, de alguns vizinhos que saíam para o trabalho, ainda encontrei minha mãe, seu companheiro e meu irmão na saída da cidade. Passei por eles, parei para um último abraço e parti, seguindo os ventos de uma carreta que acabara de passar por ali.

As últimas abanadas daquelas mãos que me brindavam com sinceros “até logo” foram se perdendo no horizonte. Os meus olhos, míopes por uma peça pregada pela genética, se tornaram ainda mais ofuscados quando as lágrimas os encheram de alegria e emoção.

À minha frente estava uma longa e desordenada estrada tipicamente mineira. O dia, que amanhecera “morno”, preparava aquela que seria a surpresa mais desafiadora de toda a viagem: três dias de muito morro sob um sol na casa de seus 40 graus.

Insolação foi o troféu do primeiro dia de viagem. Pedalar durante a noite a premiação do segundo dia e a falta de almoço estourou os fogos de artifício da minha chegada à cidade de São José dos Campos, no estado de São Paulo.

De lá, subi a Serra do Mar debaixo de uma chuva fina e fria. Senti as piores dores musculares da viagem quando, passados aqueles três primeiros dias de muita superação, enrijeci o meu corpo por completo na tensão de estar iniciando a descida de uma serra sem acostamentos, com visibilidade baixa e na companhia de incontáveis caminhões.

Serra do Mar

E de repente a chuva parou, o acostamento surgiu e uma clareira se abriu entre as copas fechadas das matas laterais. Revelou-se ao fundo uma das mais belas paisagens já vistas por meus olhos. Daquela sacada dos deuses eu pude avistar a imensidão do Atlântico, a infinitude das praias do litoral paulista e as contorcidas montanhas que formam o imponente paredão da Serra do Mar.

E de Caraguatatuba fui ainda enfrentar alguns sobes e desces na paradisíaca região de Maresias e Boiçucanga. Acampei pela primeira vez em um quintal de casa. Bati recordes de velocidade e desempenho atravessando a Baixada Santista e fui me repousar em Peruíbe, acolhido em uma casa de avó. Cruzei por mares de banana em uma das maiores regiões produtoras desses potássios no Brasil e perdi a chance de justificar meu voto nas eleições por puro desejo de chegar ainda com luz do dia à cidade de Registro.

Tive a pior noite de sono num barato hotelzinho que estava bombardeado de sequestradores de hemácias, ou pernilongos, como queiram chamar. Tive também o mais patético avanço em viagens quando acordei às cinco horas da madrugada para descobrir que o pneu da bicicleta estava furado e que não conseguiria sair da cidade antes das 9 h 30 min. Cheguei a Cajati, míseros quilômetros à frente, e resolvi abrir mão daquele dia que começara às avessas. Entrei no estado do Paraná sem saber que já estava por lá e perdi a chance boba de comemorar a conquista embaixo de uma daquelas plaquinhas de fronteira. Fui apresentado à Estrada da Graciosa e acreditei que a viagem já poderia ter acabado por ali. Cheguei em Morretes, a terra do barreado, e só fui descobrir os detalhes deste prato culinário quando já estava saindo do estado, o que não durou muito, o litoral do Paraná é minusculamente charmoso. Ah, sou vegetariano.

Em Guaratuba brindei um dia de milionário ao me hospedar em uma pousada de frente para o mar. O que a ocasião não mostrava é que o quarto era minúsculo e a hospedagem tinha preço de comida a quilo de mercadão.

Entrei em Santa Catarina e aprendi a chamar São Francisco do Sul de São Chico. Conheci um casal de cicloturistas da Espanha que saíram para o mundo há quatro anos e visitei o tão sonhado Museu Nacional do Mar. Ainda sem lugar para me abrigar entrei no gingado do acaso e, por tabela, não só encontrei uma segunda mãe na cidade como também recebi o carinho de sua hospedagem por dois preguiçosos dias. Tudo uma conspiração do universo que chegava a dar nó no cérebro quando eu tentava encontrar uma lógica para tudo aquilo.

Em Navegantes ganhei um passeio turístico com direito a guia e tudo mais e de quebra transformei o que era uma amizade virtual, em real. Mais uma vez como frequentemente aconteceu nesta viagem, fiz amigos e construí famílias para a vida toda.

Em Florianópolis pude reviver um pouco dos meus abandonados anos de engenharia que cursei ilha. Hospedei-me por dois dias na casa daquele que apelidei ser a lenda viva do cicloturismo brasileiro, Nelson Neto.

E laguna não é o mesmo que lagoa. Finalmente alcançava a cidade de Laguna, última parada antes de invadir o Rio Grande do Sul. Já começava a sentir os ventos que assopram esta extensa região de relevos baixos e me deliciava com as intermináveis plantações de arroz que enfeitavam as laterais da BR-101. Folhinhas verdes e finas de se perder de vista atoladas em extensos piscinões de terras alagadas. Um salmão bastava para termos ali o maior menu japonês da história das galáxias.

Deixei Santa Catarina com um saldo de memórias belíssimas e com uma vida “ressuscitada” de um pássaro atropelado. Brinquei de 192 e recebi as palmas de uma plateia imaginária.

Reserva do Taim

Em Torres minha alma perdeu seu fôlego pela enésima vez. Vim, brotando nas águas rasas do Atlântico, senhores paredões de muita imponência e respeito. Os espíritos brindavam a vida por ali.

Já na terra do chimarrão quase me afoguei nas estradas ao passar por intermináveis lagoas, lagos e lagunas até alcançar a quase inexistente cidade de Capivari do Sul. Acampei na varanda de um restaurante. Em Osório senti no peito a força dos ventos que colocam a girar o maior parque eólico da América Latina. Entendi que as árvores por lá não estavam tentando fugir de ninguém e que foram os estrondosos sopros da mãe natureza que as borraram naquela paisagem lavada pela falta de abrigos.

Experimentei Mostardas mas fui mesmo me encantar com a cidade de Tavares. Como pode uma cidade tão pequena, tão longe de tudo e de todos, ter um dos povos mais acolhedores e simpáticos deste país? Talvez seja influência das centenas de milhares de belas aves que por lá repousam todos os anos vindas de todos os cantos do planeta. E num golpe de pura bondade do destino, fui apresentado a uma família de ouro na portuária São José do Norte. Senti a história brotar naquelas ruas através das palavras do anfitrião.

Da cidade das grandes embarcações saí, debaixo de chuva, para o último grande desafio em solo brasileiro. Das aulas de geografia do ensino fundamental revivi memórias da infância e o sonho de conhecer a tão citada cidade de Chuí. Acabara de embarcar para uma programada etapa de dois dias de viagem até o extremo sul do Brasil. Chuva, ventos gelados e problemas com a bicicleta me fizeram trocar, no primeiro dia da jornada, um aventureiro acampamento em posto de gasolina por um seguro e aconchegante galpão aos fundos de uma Brigada Militar. Ah, como fui bem acolhido e recebido pelos lugares em que passei.

E no segundo dia, na tentativa de alcançar a fronteira do Brasil, embrenhei-me nas alagadas terras da Reserva do Taim. Vi muitos animais silvestres mortos pela pressa do homem e suas máquinas, mas vi também muita vida bela em liberdade. Tentei brincar de esconde-esconde com algumas tartarugas mas desisti quando elas se recusaram a sair de casa. E pensando estar próximo ao Uruguai tive que adiar essa conquista. Dessa vez não me escapou o posto de gasolina.

E finalmente, depois de três longos dias percorrendo a quase inóspita Rota Extremo Sul, cheguei à cidade brasileira de dois idiomas. Das criações do meu imaginário de uma cidade aos moldes coloniais restaram-se poucas ruas pavimentadas, muito comércio, construções mal conservadas e cheiro de muito consumismo. Chuí não era o eu que pensava ser, mas foi deliciosamente bom conhecê-la como realmente ela é.

Posto de Gasolina

“Tarjeta Internacional de Entrada”. Finalmente estava pronto para dar o último grande passo na conquista de um sonho. Mais uma vez a miopia tomou um belo banho de salmoura. O sr. Atlântico logo veio me dar as mãos e dizer: vou estar contigo em todos os momentos até que você chegue a salvo e feliz ao seu destino final, a capital da República Oriental do Uruguai.

Encantei-me com as primeiras cores do Uruguai e me casei com Punta del Diablo quando a conheci. Falava espanhol tão bem quanto um berimbau desafinado. Traí. Desfiz o meu matrimônio com as encantadoras curvas “del Diablo” quando me deitei nas majestosas praias de Cabo Polônio. Troquei as contagens de quilometragem pelos números de nasceres do sol que ainda me restavam até Montevidéu.

E ele veio, o último brilho do acordar da mãe estrela antes de entrarmos de corpo e alma nas terras dos revolucionários Tupamaros. Os deuses do clima me brindaram a chegada com um gelado banho vindo dos céus.

Socava os ares enquanto proferia palavras sujas de alegria. A insanidade mental assumiu as rédeas dos meus atos até que finalmente, no deleite de um aconchegante albergue de Montevidéu, caí para o repouso da vitória.

E após 34 dias de viagem, 2.930 quilômetros rodados, eu havia finalizado uma das mais intensas páginas da minha vida, que ainda guardava uma memorável surpresa: o encontro com José Alberto Mujica Cordano, o “Pepe”, um dos presidentes mais amados do planeta. A surpresa veio em forma de combo: o famoso fusquinha azul calcinha que já havia sido negado à venda pelo valor de um milhão de dólares, a histórica personagem Lucía Topolansky, também apresentada como primeira dama, e claro, a figura mais carismática da atual política mundial, o presidente do Uruguai, Mujica. Um encontro simples como manda o figurino. Área rural em uma região de baixa renda ladeada por cãezinhos revoltados com aquele viajante de trajes lunáticos. Um demorado aperto de mão, algumas palavras de admiração e o espanto de Pepe ao descobrir que eu partira de Minas Gerais, o que acabou culminando nas suas sinceras palavras de sorte. Tudo cuidadosamente organizado por aquelas mãos invisíveis citadas por Joseph Campbell no livro O Poder do Mito. A cereja do bolo ou a chave de ouro, seja qual for a denominação para aquele encontro, pra mim foi a definição de que não existem hierarquias entre homens de bom coração.

Dos grãos de areia das praias que nunca se repetiam aos distintos cantos dos cardeais das planícies do sul, tudo era singularmente magnífico e emocionante. E por fim, posso dizer com a ternura de uma alma viajada: fiz amigos para a vida toda e memórias para muitas gerações.

Viajar é bom, de bici então, não tem preço.

ESTA VIAGEM ACONTECEU EM OUTUBRO DE 2014 E FOI PUBLICADA NA EDIÇÃO DE MARÇO DE 2015 DA REVISTA BICICLETA.

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julho 22, 2016 0 comentário
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